O trem de Patti Smith

Literatura

09.11.15

Amanhã à noite Patti Smith vai subir ao palco do Beacon Theater para comemorar 40 anos de seu primeiro disco. Quando Horses chegou às lojas, ela vivia do jeito que contou em Só garotos, uma espécie de autobiografia de todo mundo que, um dia, quis alguma coisa com a arte. Hoje, elevada à condição de anti-instituição dos pirados de todas as latitudes, irônica “poeta laureada do punk”, Patti leva a vida que se desenha entre as elipses de M Train, livro indefinível, mais ou menos próximo de uma memoir, que saiu nos EUA pela Knopf no mês passado e chega ao Brasil ano que vem pela Companhia das Letras.

Patti Smith em fotografia de Claire Alexandra Hatfield

O “trem M” não faz parte do emaranhado de linhas de Nova York, onde Patti mora com três gatos numa townhouse do Soho. É metáfora que ela prefere não definir e que na avalanche de resenhas que se seguiram ao lançamento do livro foi associado ao “m de mente”, “de memória” , “de meditação”. “De melancolia”, acrescentaria eu se isso tivesse alguma importância. Mas não tem, já que a principal intenção dos textos e polaroides reunidos numa edição sóbria e delicada é menos narrar uma história do que oferecer ao leitor uma espécie de álbum sentimental e literário. Para apreciar M Train é melhor deixar de lado qualquer comparação com Só garotos, sanguíneo e pulsante. Este é contemplativo e crepuscular.

Não que ela, aos 68 anos, tenha de alguma forma encaretado ou deprimido. Se hoje não há mais perrengues da vida prática, sobram questões da maturidade. Se a garota que sofria tentando moldar seu talento realizou-se plenamente, a mulher madura não está exatamente apaziguada. A menina apaixonada por Fred Sonic Smith continua, no entanto, apaixonada por Fred Sonic Smith 21 anos depois da morte dele, o companheiro que lhe deu dois filhos e uma cumplicidade comovente, entranhada em cada linha do que escreve, como se tudo se transformasse num prolongado e suave luto.

É a “experiência”, portanto, palavra ao mesmo tempo gasta e exata, a matéria bruta das histórias, anotações e cenas que, ela sugere, tomaram forma numa mesa de canto de um pequeno café típico do Village. Do mesmo ponto de vista do Café ’Ino, frequentado dia após dia, fazia os mesmos pedidos, entornava baldes de café e alternava a escrita – em moleskines, guardanapos, papéis soltos – com leituras, muitas leituras, leituras compulsivas. Da íntima convivência com a literatura, acho, vem a habilidade com que Patti cria uma cena, com mesa e duas cadeiras, para os esforços da memória, a recente e a distante.

Tudo o que ela viveu, vive, escreveu e escreve é mediado pela literatura – de Robert Musil aos romances policiais. A música, é claro, e seriados de detetives também têm lá seu papel, mas é pela palavra escrita que ela atualiza, de modo muito particular, o clássico apagamento (ou desejo de apagamento) dos limites entre existência e criação artística. Em vez do poeta romântico, isolado e arrebatado pela inspiração, entra em cena uma espécie de idealismo cotidiano, sucessão de utopias mínimas. A cada passo, um ideia, uma referência literária – que o Brainpickns e sua fúria trivializadora transformou, é claro, numa lista. É como se um verso, diálogo ou cena de romance fossem uma contraprova de que a vida, de alguma forma, pode valer a pena.

Com Jean Genet na cabeça, ela e Fred, recém-casados, foram parar na Guiana Francesa: Patti queria visitar a prisão descrita em Diário de um ladrão e, quem sabe, entregar ao próprio escritor as pedras que recolheu por lá. A mesma ideia, ou obsessão, a levaria décadas depois ao Marrocos, para depositar as pedras, longamente guardadas, no túmulo do escritor. Em outro momento, ela enfrenta neve e muito frio para visitar o cemitério no interior da Inglaterra onde foi enterrada a poeta Sylvia Plath. A visita aos túmulos de escritores, devidamente registradas nas polaróides, são um clássico para quem alguma vez na vida já viajou só por causa de literatura (como este que vos digita). É uma peregrinação sem Deus que ela explica belamente:

“Peregrinos espanhóis percorrem o Caminho de Santiago de monastério em monastério, colecionando pequenas medalhas para pendurar em seus terços, como provas de seus passos. Eu tenho pilhas de polaróides, cada uma delas marcando meus próprios passos, que às vezes espalho como um tarô ou figurinhas de basebol de um imaginário time celestial”.

Dentre estas relíquias estão as imagens de uma cadeira de Roberto Bolaño (ela revirou em detalhes o 2666, fascinada), a cama e as muletas de Frida Khalo, a máquina de escrever de Herman Hesse, a mesa em que Friedrich Schiller escreveu Wallenstein e um urso empalhado da casa de Tolstói. A intoxicação literária é tamanha que, na casa onde viveu com Fred e os filhos em Detroit, no tempo em que se afastou da carreira, as crianças pensavam que Albert Camus, presente num pequeno quadro em sua pose mais conhecida, com o cigarro pendendo da boca, era um tio distante.

M Train narra ainda a compra de uma pequena casa em Rockaway Beach, praia próxima a Nova York. É uma casa idealizada, que mobiliza Patti de todas as formas – para pagá-la, ela mergulha numa maratona de shows e leituras – e que pouco depois de comprada resiste à fúria do Sandy, furacão que fustigou os EUA no final de 2012. Rockaway ganha, assim, força simbólica de um recomeço e, conforme conta em entrevista ao New York Times, é a primeira casa “toda sua”, sem qualquer interferência de família e de amigos.

Fico torcendo para que Patti seja levada por sua insaciável curiosidade intelectual ao Mal de Montano, de Enrique Vila-Matas. Talvez ela se reconheça na doença daqueles que não conseguem ler o mundo sem o filtro literário. E, também, para que lhe caia nas mãos o Carlos Drummond de Andrade de Claro enigma, mais exatamente os versos de “Memória”, aquele sobre “amar o perdido”. Pois é essa a dura disciplina do M Train, fundada na certeza de que “as coisas findas/ muito mais que lindas, essas ficarão”.

A propósito, o Café ’Ino também fechou. A mesa, com duas cadeiras, ela ganhou de presente. E está hoje na casa de Rockaway e aparece nesta foto, que é a capa do livro e foi tirada pouco depois de saber que também aquele lugar desapareceria de sua vida.

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