O voo abortado de Zemeckis

No cinema

21.02.13

O cinema de Robert Zemeckis trafega por um território entre a invenção e a convenção, aproximando-se ora mais de uma margem, ora da outra. Às vezes ele marca um golaço, como em De volta para o futuroUma cilada para Roger Rabbit Forrest Gump; outras vezes bate na trave (A morte lhe cai bemNáufrago). Quase nunca é desinteressante ou aborrecido. Dos cineastas apadrinhados por Steven Spielberg, é sem dúvida um dos mais talentosos, ao lado de Joe Dante.

Seu novo rebento, O voo, que concorre aos Oscars de ator (Denzel Washington) e roteiro original, é mais uma prova de seu talento e competência, aqui num registro mais grave, menos juvenil, até pela seriedade do tema: um piloto alcoólatra (Washington) envolvido num grave acidente aéreo.

http://www.youtube.com/watch?v=LdpzTsqRSPw

Não que Zemeckis tenha aberto mão do espetáculo: a sequência do desastre só se equipara, a meu ver, às imagens espantosamente realistas de Sem medo de viver (Peter Weir, 1993), outro filme que busca encenar o drama de sobreviventes de uma queda de avião. Só que Zemeckis faz isso de modo mais adulto, e demora mais a descambar para a concessão edificante. (Sim, concordo com os críticos que dizem que o final redentor e politicamente correto não condiz nem com a lógica do personagem nem com a da narrativa). Aqui, para quem não viu, a cena da queda no filme de Weir:

http://www.youtube.com/watch?v=z6RCaIW42lw

Ação, drama, reflexão

Mas é nada menos do que admirável a maneira como Zemeckis equilibra ação, drama e reflexão até os 45 minutos do segundo tempo (na verdade, até por volta do 120º minuto de filme). Há muita coisa em cena: a investigação das causas do acidente; a crise moral do piloto; sua relação com uma nova namorada (uma junkie tentando ficar “limpa”), com a ex-mulher e com o filho; os interesses conflitantes da companhia aérea, do fabricante de aviões e da seguradora etc. Um xadrez que Zemeckis conduz com firmeza e elegância.

Algumas passagens são memoráveis: o diálogo a três numa escada de emergência do hospital, entre o piloto, a junkie e um rapaz com câncer terminal; a cena em que o protagonista entra por acaso no quarto de hotel contíguo ao seu e se depara com uma miríade de bebidas; todas as aparições do personagem de John Goodman, um torto anjo da guarda que fornece ao piloto suas drogas e ao mesmo tempo seus antídotos, e muitas outras. Sem falar, claro, de toda a sequência que precede a queda do avião.

Durante todo o tempo há um jogo entre a história vivida pelos personagens e sua refração no noticiário televisivo, uma relação análoga à que se estabelece entre uma pessoa e seu reflexo naqueles espelhos deformadores de parque de diversões.

Trilha esperta

A trilha sonora merece um comentário à parte. Praticamente todas as canções tocadas (Rolling Stones, Joe Cocker, Jeff Beck, John Lee Hooker & Van Morrison) pertencem, grosso modo, ao campo da contracultura dos anos 1960 e 1970, ou seja, correspondem aos anos de formação do protagonista. Elas infundem uma energia e um humor essenciais para que o filme não caia no melodrama nem no mero thriller de tribunal.

Há até um jogo interno sutil na trilha sonora. Depois de “rebater” sua bebedeira cheirando umas carreiras de cocaína, o piloto e seus amigos saem para o corredor do hotel ao som do vozeirão de Joe Cocker cantando “Feelin’ alright”, de Dave Mason. Eles entram no elevador com outros respeitáveis hóspedes, a música incidental silencia abruptamente e passamos a ouvir “With a little help from my friends”, numa insossa versão muzak. Música de elevador, literalmente. O espectador mais antenado lembrará imediatamente que uma das versões mais explosivas da canção dos Beatles foi interpretada pelo próprio Cocker em Woodstock. Cria-se assim um subtexto que contrasta vertiginosamente a contracultura dossixties e a ordem conformista dos tempos atuais. O fato de, no final, O voo sacrificar a primeira em detrimento da segunda é outra história.

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