Orestes

Séries

27.06.13

O compositor e jornalista Orestes Barbosa, nascido há 120 anos, era também um grande criador de gírias e dono de estranhas manias. É o que relembra o cronista Luís Martins (1907-1981), frequentador da mesma mesa que ele no Café Nice, famoso ponto de encontro de jornalistas, compositores e malandros cariocas nas décadas de 1930-40.

Este é o terceiro texto da série Crônicas musicais de Luís Martins, que está sendo publicada às quintas-feiras no Blog do IMS. Foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, em agosto de 1966, e integra a antologia Melhores crônicas de Luís Martins (org. Ana Luisa Martins), a ser lançada pela Global Editora.

Orestes Barbosa quando jovem e aglomeração na entrada do Café Nice, na Av. Rio Branco

Orestes Barbosa quando jovem e aglomeração na entrada do Café Nice, na Av. Rio Branco

Orestes

Luís Martins

Uma das primeiras pessoas que conheci, quando me iniciei no mundo das letras, foi Orestes Barbosa. Eu tinha vinte anos – vinte e um, para ser preciso – e era ingênuo, tímido, pudico, ainda muito preso aos preconceitos e noções da minha condição de filho-família, o que divertia extraordinariamente o jornalista veterano que já estivera na Europa e na prisão, conhecia tudo que era malandro no Rio, falava gíria e parecia empenhar-se maliciosamente em me perverter e me épater [escandalizar]… “Ele parece uma menina do Sion”, dizia às vezes, referindo-se a mim, aos amigos da sua roda.

Conservo até hoje (mas no momento não encontro, na barafunda da minha biblioteca) um livrinho seu, creio que O pato preto, com uma excelente caricatura do autor, feita por [Andrés] Guevara. “Fazendo votos para que continue na fuzarca”, dizia Orestes na dedicatória.

Nesse tempo ele não era ainda o famoso criador do Chão de estrelas. Sua mania, na época, era infernizar a vida da Perua e do Tamandaré, pobres criaturas das sarjetas, tipos desequilibrados que arrastavam pelas ruas do Rio de então a sua miséria e o seu triste ridículo. Orestes não podia vê-los. Se conversava num café com amigos e um desocupado qualquer  – que todos o conheciam – vinha avisar: “Olha a Perua, Orestes”, ou “O Tamandaré está na Galeria Cruzeiro” – ele largava tudo para correr atrás de suas vítimas. Sentia um prazer diabólico em exasperá-las. Porque tanto o Tamandaré como a Perua ficavam inteiramente fora de si quando o viam. E reagiam raivosamente, enchendo a noite de palavrões estentóricos…

Orestes Barbosa foi um extraordinário criador de termos de gíria. Pouca gente sabe que o emprego do verbo “morar” no sentido de “perceber”, “entender” (“É uma brasa, mora”), foi invenção sua. Já nesse tempo, ele dizia: “Fulano não está morando no assunto”; “Beltrano é um vigarista, mora”; “Eu é que vou dar o fora, morou?”.

Subitamente, não sei por que motivo, deixou de falar comigo. Nos últimos anos em que vivi no Rio, eu o via com frequência na terrasse do Café Nice, na companhia de astros da música popular de então, mas ele fingia não me conhecer. Esse afastamento sem briga, sem discussão, sem rompimento, constitui um enigma que nunca pude decifrar. Talvez eu não fosse suficientemente “da fuzarca”, como ele desejara e fizera votos que eu me tornasse… Mas concordo com Manuel Bandeira e Rubem Braga: “Tu pisavas nos astros distraída” é o mais belo verso da língua portuguesa.

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