Os anéis da sequoia

Cinema

13.11.13

No dia 15 de novembro, o IMS lançará em DVD o documentário autobiográfico As praias de Agnès, da cineasta belga, radicada na França, Agnès Varda. Para acompanhar o lançamento, entre 15 e 28 de novembro o cinema do IMS apresentará a mostra Retratos de família, com filmes em torno das famílias de seus realizadores.

Elena, de Petra Costa

Elena, de Petra Costa

“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. Assim Liev Tolstói começa Anna Kariênina. São tantos os meios tons entre felicidade e infelicidade, entre sorte e azar, quanto inúmeras e intermináveis são as histórias por contar. Talvez daí a força da abertura do romance russo: a felicidade é fácil de contar, sugere Tolstói, mas quantas histórias podem ser contadas quando a vida torna-se mais complicada?

O sofrimento não é o denominador comum dos filmes que compõem a mostra Retratos de família, de sexta-feira, dia 15, com a exibição de Um passaporte húngaro de Sandra Kogut, até quinta, dia 28, com a exibição de A música do pai, de Igor Heitzmann. Em todos esses filmes é possível perceber uma relação carinhosa entre os personagens, mas a verdade é que um pouco de dor, desconforto ou segredo familiar se encontra por trás desse carinho. E se é verdade que cada família infeliz é infeliz à sua maneira, também é verdade que nas famílias dos filmes dessa mostra existe algo da família de cada espectador. “Essa casa pode ser a casa de qualquer um de nós”, disse um amigo depois de ver 51, Birch Street de Doug Block.

Como filmar a família? E para quê filmar a família? Deixemos em branco a primeira pergunta. Cada um dos filmes que compõem a mostra pode ser considerado uma resposta válida – e ao mesmo tempo provocadora de outras questões: Como se distanciar? Qual o espaço da mãe, do filho, da neta, da irmã? Qual o espaço do cineasta? Onde situar-se? Já para que filmar a família? permite respostas mais precisas. Penso em Philippe Lejeune e no que ele define como a “função reparadora da autobiografia”, visível naqueles filmes que, em certa medida terapêuticos, nascem de uma necessidade urgente para o realizador de encerrar um capítulo de sua vida, de encontrar respostas que só podem ser alcançadas pelo processo cinematográfico.

Um exemplo dessa urgência é Elena, de Petra Costa. Ela filma a família, mas seu olhar está voltado para si mesma e para o que o suicídio da irmã provocou nela. Talvez seja inevitável quando se faz um retrato de uma pessoa ausente: Petra termina por fundir-se com o fantasma de Elena. A morte, tema dominante do filme, longe de ser um elemento obscuro é uma presença quase sedutora, assim como também para Yulene Olaizola, jovem cineasta que em seu filme de graduação na escola de cinema, Intimidades de Shakespeare e Víctor Hugo, revela uma certo parentesco com El diablo nunca duerme de Lourdes Portillo. São duas investigações, histórias de detetives. Na primeira, a sobrinha investiga o que de fato ocorreu com o tio encontrado morto com um tiro na cabeça. Na segunda, a neta procura investigar as pistas deixadas por um misterioso inquilino da casa de sua avó, Rosa. Como o filme de Olaizola, os curtos O jardim de Raul e Luna e Cinara são outros bem logrados trabalhos de escola. O primeiro é um retrato do pai da mexicana Sarasvati Herrera num momento crucial da vida; o segundo, uma crônica gentil e carinhosa da relação entre Luna, a avó da realizadora, e sua empregada Cinara.

A música do pai, de Igor Heitzmann

A música do pai, de Igor Heitzmann

Avôs e Com o meu coração em Yambo, dois bem-sucedidos documentários equatorianos, têm muito em comum: narram histórias familiares entrecortadas por horrores, da ditadura o primeiro, e da extrema-direita do tempo de Febres Cordero o segundo. Avôs conta em paralelo a história dos avôs da diretora. Remo, o avô paterno, desaparecido político na ditadura de Pinochet, e Juan, o avô materno, médico autodidata que dedicou sua vida à pesquisa. Com meu coração em Yambo relata um caso de violação de direitos humanos que traumatizou o Equador, o dos irmãos da realizadora María Fernanda Restrepo (Santiago, de 17 anos, e Andrés, de 14), desaparecidos nas mãos da polícia em 1988. É um exemplo de filme que só poderia ser feito a partir do olhar da irmã das vítimas. María Fernanda trabalha num espaço íntimo, dela e de mais ninguém, sem se descuidar do componente histórico e político em torno do desaparecimento de Santiago e Andrés.

Embora possam ser encontradas em todo o mundo famílias em que o pessoal e o político não podem ser separados, existe hoje um lugar no mundo em que o político vai além de uma atitude ou de uma escolha individual. Na Palestina, tornou-se impossível ser uma pessoa apolítica. E assim, com estilos muito diferentes entre si, 5 câmeras quebradas e Porto da memória (filmes feitos na fronteira, entre Palestina e Israel, entre o documentário e a ficção) propõem uma reflexão sobre a construção de uma memória familiar e a perda de raízes num território constantemente em perigo. Diario de Sintra, de Paula Gaitán, é um filme livre e introspectivo. Mais de vinte anos depois da morte do marido, Glauber Rocha, a cineasta retorna a Sintra, cidade portuguesa, aos últimos momentos em que a família esteve reunida. A viagem, mais do que a um espaço físico, leva Gaitán ao reencontro de uma ausência.

Nesse mesmo terreno livre e autobiográfico, em As praias de Agnès Varda passeia por sua vida, sua família e pelas imagens que foi reunindo durante sua trajetória. Os filmes da mostra compõem um passeio em torno do lançamento da autobiografia de Agnès em DVD. Pulsações, desde sua sensibilidade e recato, é um filme sobre temas mais amplos, sobre a memória familiar, sobre os espaços pessoais que habitamos. É um filme que ao nos aproximar da vida dos outros procura demonstrar que é assim é a vida de todos nós.

Há um certo tempo, em visita a um bosque de sequoias, árvores altíssimas de madeira avermelhada que vivem mil, dois mil anos. O tronco de uma árvore estava exposto ali com seus 1900 anéis, quer dizer, com seus 1900 anos. Diante de todos os acontecimentos que ocorreram em torno dessa árvore, e diante de sua magnitude, nossas histórias parecem nada. Talvez por isso podemos imaginar cada filme deste programa como um dos arcos do tronco de uma sequoia. Vendo a vida da perspectiva de uma árvore milenária torna-se possível compreendê-la como batidas intermitentes, instantes, pulsações.

 

* Maria Campaña Ramia é crítica de cinema. Programadora do Festival de Cine Documental Encuentros del Otro Cine no Equador, selecionou os filmes que compõem a mostra Retratos de família.

MAIS

Meus 80 anos, por Agnès Varda – a diretora de As praias de Agnès, um dos títulos da mostra, fala sobre seu processo de criação neste filme.

 

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