Ouro Preto, memória e ausência

No cinema

23.06.15

“Onde estão os negros?”, perguntou celebremente Jean-Paul Sartre numa reunião com intelectuais brasileiros – todos eles brancos – quando visitou o país, em 1960. Mais de meio século depois, a pergunta ecoou nas discussões travadas na décima edição da CineOp, a Mostra de Cinema de Ouro Preto, encerrada ontem (22 de junho).

Um dos poucos festivais brasileiros com perfil bem definido e coerente – a preservação do patrimônio audiovisual e seu papel na construção da memória coletiva –, a CineOp teve como eixo central este ano a presença negra no nosso cinema. Uma presença insuficiente, falha e problemática como em tantas outras esferas: a universidade, a política, a gestão do capital.

Um dos depoimentos mais eloquentes foi o do jovem cônsul do Senegal em Belo Horizonte, Ibrahima Gaye, presente a um dos debates. Ao chegar ao Brasil há dezesseis anos, fascinado pelo futebol brasileiro e pela perspectiva de conhecer um país onde supunha que brancos e negros vivessem em harmonia, ele passou duas horas no aeroporto do Galeão e o único negro que viu foi o faxineiro de um dos banheiros. “Pensei: que país é esse, tão diferente do que eu imaginava?” Está perguntando isso até hoje.

Clássicos e contemporâneos

Pois bem, vamos aos filmes. No velho Cine Vila Rica foram exibidos em cópias restauradas clássicos como Limite (Mario Peixoto, 1930), Ganga Zumba (Cacá Diegues, 1964), Antes, o verão (Gerson Tavares, 1968) e A Rainha Diaba (Antônio Carlos da Fontoura, 1974), este último estrelado pelo grande homenageado do evento, Milton Gonçalves. Todos eles com o frescor e o vigor razoavelmente intactos.

Cena de Retratos de identificação, de Anita Leandro

Mas o espaço é curto e quero falar dos filmes novos. Se My name is now, Elza Soares, de Elizabeth Martins Campos, me pareceu aquém da riqueza de sua personagem, talvez por ter sido exibido na dispersão ventosa da praça Tiradentes, dois outros documentários inéditos tiveram um impacto tremendo: A paixão de JL, de Carlos Nader, e Retratos de identificação, de Anita Leandro.

Diário íntimo

Vencedor do último festival de documentários “É tudo verdade”, A paixão de JL tem como eixo as fitas cassete em que o artista visual José Leonilson (1957-93) registrou uma espécie de diário íntimo nos últimos anos de sua vida. Leonilson começou a gravá-las com a intenção de fazer depois um livro, mas durante o processo foi diagnosticado como soropositivo e acabou morrendo poucos anos depois, vitimado pela Aids. As fitas ficaram então como um registro pungente de seu martírio interior e de sua dilacerada relação com o mundo à sua volta.

Toda a locução do documentário resume-se à voz de Leonilson falando ao gravador, mas as referências que ele evoca explodem na tela como um caleidoscópio de imagens e sons, de telenoticiários sobre o bombardeio do Iraque a um show de Madonna, de uma cena de Perdidos no espaço a uma entrevista de Magic Johnson, de um trecho de Paris, Texas a um beijo de novela – tudo isso pontuado por obras do próprio artista, refletindo a cada momento seu corpo a corpo com a vida.

Poucas vezes um filme terá flagrado de modo tão íntimo e honesto o frustrado “pacto entre o cosmo sangrento e a alma pura” de um artista, para citar o verso de Mario Faustino.

Silêncio e ausência

Diferentemente do tarimbado documentarista Carlos Nader, a diretora de Retratos de identificação, Anita Leandro, é mais uma pesquisadora do que propriamente cineasta. Isso não a impediu de realizar um documentário de grande força. A partir da abertura de arquivos dos órgãos de repressão da ditadura militar, ela teve acesso a uma impressionante documentação: fotos de prisioneiros em diversas situações, além de textos em que o regime deixou registrados seus próprios crimes.

Um dos grandes acertos da diretora foi a decisão de concentrar-se em poucos personagens interligados: Antonio Roberto Espinosa, Chael Charles Schreier, Maria Auxiliadora Lara Barcelos e Reinaldo Guarany, militantes de organizações de esquerda presos e torturados no final dos anos 1960 e início dos 70. Dos quatro, só dois sobreviveram. Chael foi morto sob tortura na Vila Militar do Rio de Janeiro e Maria Auxiliadora suicidou-se no exílio.

Os dois sobreviventes – Espinosa, da VAR-Palmares, e Guarany, da ALN – são confrontados com fotos e documentos agora revelados e reconstroem então sua história diante da câmera. É uma conversa dura, difícil, com um tanto de humor e outro tanto muito maior de dor. Dos depoimentos dos dois sobressai uma personagem fascinante, Maria Auxiliadora, aliás Chica, aliás Dora, que também aparece falando em trechos de documentários anteriores, durante seu exílio no Chile de Allende. Espinosa foi preso e torturado junto com Dora, Guarany era seu companheiro quando ela se matou em Berlim em 1976, jogando-se na frente de um trem.

Em dado momento da conversa com Reinaldo Guarany, sua fala, até então tranquila e desenvolta, torna-se entrecortada, gaguejante, e ele se retira da frente da câmera, que permanece fixa, enquadrando o fundo branco vazio. Segue-se um minuto ou mais em que a tela é dominada pelo silêncio e pela brancura. O peso insuportável da ausência, num grande momento de cinema.

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