Palácio de Lágrimas

Colunistas

10.10.11

Uma amiga me leva ao museu recém-inaugurado no “Palácio de Lágrimas”, uma construção de vidro ao lado da estação do S-Bahn (o metrô de superfície), na Friedrichstrasse, onde era feito o controle de fronteira na época do muro. Por ali passavam os turistas e visitantes de Berlim Ocidental. Mas também os espiões da Stasi enviados para o ocidente. Era ali que as famílias de Berlim Oriental se despediam dos filhos que conseguiam, excepcionalmente, o visto para debandar para sempre. E era por ali que alguns, mais desesperados, tentavam passar, mesmo sem visto, acreditando que, depois de presos, poderiam ser resgatados como dissidentes políticos pela Alemanha Ocidental. Daí o nome do lugar. Entre as coisas mais sinistras da exposição, estão as fichas com a tipologia fisionômica dos indivíduos (tipos de cabeça, de olhos, de sobrancelhas, de nariz, de testa, de orelha etc.) para facilitar o reconhecimento dos policiais.

Minha amiga foi “comprada” pela RFA. Já no final da adolescência, tinha decidido deixar a qualquer preço a Alemanha Oriental. E não sabe explicar por que não foi presa quando pediu para ir embora, como acontecia com outras pessoas que faziam o mesmo. Os pais, que eram simples trabalhadores, tampouco foram perseguidos. Apenas ela caiu em desgraça. Trabalhava num teatro. Passou a lavar o chão. Esperou alguns anos até os advogados ocidentais que trabalhavam pelos dissidentes da RDA comprarem seu passe. A Alemanha Oriental precisava de dinheiro. E mantinha um encarregado oficial para negociar com o ocidente a liberação de dissidentes e presos políticos.

Minha amiga quer rever o “Palácio de Lágrimas”. Faz anos que não pisa ali. Não entendo direito a sua história. Não sei se foi por ali que ela passou para Berlim Ocidental. Não entendo por que ela foi selecionada para ser “comprada” pelo ocidente, se nem presa estava. Por um instante, enquanto ela recorda com ironia o passado, me pergunto se minha amiga não teria sido uma espiã. Ela me conta tudo aos pedaços. Bem antes de ela conseguir a autorização para sair, o namorado já tinha decidido escapar para o ocidente, escondido num compartimento em cima do banheiro de um vagão de trem entre Budapeste e Viena. Quando pararam numa estação no meio do caminho, ele achou que já estivessem na Áustria e, para conter o nervosismo, acendeu um cigarro. Foi descoberto e mandado para uma prisão no interior da RDA. Minha amiga não recebeu mais notícias. E bastou para entender que o namorado tinha dado com os burros na água.

A certa altura da prisão, ele foi autorizado a receber presentes no Natal. Mas a autorização só chegou às mãos da minha amiga, de propósito, quando já era tarde para enviar o que quer que fosse por correio. Ela não pensou duas vezes antes de tomar um trem e ir entregar o pacote pessoalmente. Foi barrada na porta. A autorização só permitia encomendas por correio. Gritou bastante com o guarda antes de voltar aos prantos para a estação. E, enquanto esperava o trem, viu um vagão postal parado na plataforma. Os funcionários do correio se compadeceram da sua história e se comprometeram a entregar o presente ao namorado. Mas ele só entendeu que não tinha sido esquecido no Natal ao ver os pedaços do pacote picado no fosso onde os presos lavavam os pés.

O namorado acabou sendo negociado com a RFA. E por um tempo os dois puderam se encontrar em visitas eventuais que ele fazia a Berlim Oriental. A situação ficou difícil quando ele confessou que tinha uma mulher no ocidente. Durante esses anos, antes de receber o salvo-conduto, minha amiga, que acabou se tornando especialista em teatro latino-americano, foi abordada na rua por colombianos que se ofereceram para tirá-la de Berlim Oriental, escondida num carro com chapa diplomática. “É claro que eu não aceitei. Nunca é demais desconfiar”, ela diz.

Já no ocidente, só voltou a ver o pai uma vez, pouco antes de ele morrer, durante um indulto. “Eu estava morrendo de medo, vendo todos aqueles velhos reencontrando os filhos que não viam fazia anos. E, de repente, lá estava ele, o meu pai, impecável. Não tinha dinheiro nenhum. Mas estava sempre tão elegante.”

Ao sairmos do “Palácio de Lágrimas”, minha amiga vê o cartaz de Simplesmente complicado, a peça de Thomas Bernhard, na fachada do Berliner Ensemble, do outro lado do rio. Na mesma hora, combinamos assistir à peça juntos. Minha amiga também é fã de Thomas Bernhard. Tem espírito iconoclasta. Uma vez, numa reunião, e para constrangimento geral, ela mandou Heiner Müller calar a boca, aos berros. Antes de nos despedirmos, em frente ao “Palácio de Lágrimas”, ela me alerta: “Mas cuidado! Thomas Bernhard é um veneno!”. Nunca é demais desconfiar.

 

* Na imagem da home que ilustra este post: museu do Palácio de Lágrimas, em Berlim

 

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