Perdidas em algum lugar – quatro perguntas a Paulo Scott

Quatro perguntas

18.06.13
Paulo Scott (por Renato Parada)

Paulo Scott (por Renato Parada)

 

Ithaca Road é o terceiro romance de Paulo Scott, escritor e poeta nascido em Porto Alegre e radicado no Rio de Janeiro que estreou na ficção com os contos de Ainda orangotangos, em 2003. Integrante do projeto Amores expressos, para o qual o autor passou um mês em Sydney, na Austrália, o romance tem como protagonista Narelle, uma neozelandesa mestiça que volta às pressas para a cidade para cuidar do bar-restaurante do irmão, que desapareceu do país para fugir das dívidas. Distante do namorado, que está no Brasil a trabalho, cada vez mais afetada por uma condição dermatológica crônica e sem rumo certo na vida à beira dos 30 anos, Narelle é forçada a encarar a própria dissipação ao ver estremecida a sua relação com a amiga Trixie e conhecer Anna, uma jovem artista que parece viver mergulhada num mundo próprio.

1) Embora você já tenha declarado que Ithaca Road é um romance menos pretensioso quanto a questões políticas e geracionais, a narrativa evidencia uma sensação de desconforto bastante comum aos seus livros, e que parece refletir um atrito inevitável entre o indivíduo e o contexto sociopolítico que o cerca. As repercussões políticas de atos isolados são uma preocupação sua na hora de contar uma história?

Sempre há uma posição a tomar. Não sei se na literatura seja muito eficaz predeterminar-se; a história e as personagens, em maior ou menor grau, conduzem o autor, o processo criativo. 2008 foi um ano importante na nossa história recente – as repercussões econômico-financeiras são sentidas até hoje. Parece difícil desconsiderar esses momentos, essas implicações. Ithaca Road está longe de ser um romance alienado dos acidentes sociais, das agressões cotidianas da política, mas Narelle e seus dilemas (e sua grande aventura) prevalecem.

Tentei explorar o fato de que a Austrália, não só pela condição insular, mas pelo imaginário solar que a cerca (sendo uma amostra inconteste de paraíso), tem suas mazelas, a sujeira que é varrida para baixo do tapete e que ninguém se sente confortável em lembrar. Foi importante acompanhar de perto o debate que levou o governo australiano a pedir perdão aos que – sendo mestiços de branco com aborígene, por uma política de Estado repressora de qualquer possibilidade de miscigenação -, quando crianças, foram afastados de suas mães (isso ficou conhecido por lá como geração perdida, e chegou a ser tratado na superprodução cinematográfica Austrália). São coisas que aqueles trinta dias morando no país me deram, são contextos inevitáveis, vozes e fantasmas que certamente respingaram no romance.

2) Narelle, a protagonista do romance, mesmo sendo mestiça, é tratada como maori. A ênfase étnica que evidencia o choque cultural entre nativos e colonizadores, presente em Habitante irreal, se repete em Ithaca Road?

A temática está lá, sim, mas em um plano diverso. Depois que fiquei um mês na Austrália fui para a Nova Zelândia e lá, tendo a possibilidade de comparar os dois países, me impactou a forma com que essas duas sociedades resolveram de maneiras tão distintas o convívio entre nativos e invasores europeus – na Nova Zelândia, alguém como Narelle seria totalmente verossímil, enquanto na Austrália uma aborígene mestiça já seria mais rara, embora não impossível de conceber. Mas a condição étnica não é um obstáculo para Narelle, como foi para Maína em Habitante irreal. O choque étnico surge em Ithaca Road com outra função.

Contrastes sempre sustentaram a literatura e prefiro pensar que meus livros valorizam essa possibilidade e que minhas personagens são fruto disso. A guerra custosa e velada entre Narelle e a cidade de Sydney se estabelece mais a partir da relação indissociável entre presente e passado. Narelle é talentosa, mas ficou perdida em algum lugar. Os cinco dias da sua estada em Sydney, tratados no romance, centram-se na formação de uma conjuntura que a dobrará, dando a ela a oportunidade de recuperar (ou não) uma autenticidade e uma alegria de viver perdidas.

3) Narelle e Anna têm em comum o fato de serem portadoras de condições (psoríase e Síndrome de Asperger, respectivamente) que dificultam em maior ou menor grau as relações interpessoais. Uma leitura talvez apressada pode sugerir o envolvimento afetivo entre duas personagens do mesmo sexo, com dificuldades variadas de integração, como o elemento desencadeador da revelação final que ilumina a trama. Foi essa sua intenção?

Imagino que não seja impossível alguém rotular Ithaca Road como um romance gay. Como autor, posso dizer que o envolvimento entre Narelle e Anna é apenas afeto, encontro, esporádico – como esporádicas são os vínculos na trajetória de Narelle – sem intenção de levantar qualquer bandeira. Se há tese, nesse particular citado, é a de que a aproximação, quando inevitável, intensa e redentora, independe da inclinação sexual dos envolvidos. Pessoas (no caso do livro, pessoas em situações complicadas) se atraem e ponto. Nesse processo de coragem está uma das razões mais relevantes de viver, de existir.

Fico incomodado com a necessidade de rotular e classificar que existe, sobretudo entre os heterossexuais, mas que também existe no universo homossexual. Levei muito a sério a tônica Amores expressos. Narelle é um trem-bala desgovernado atraindo pessoas, despertando interesse, paixões. Anna é uma das pessoas que foram sugadas por esse magnetismo, mas que por todas as peculiaridades que a cercam deslocou o eixo planetário de Narelle ao entrar na sua órbita.

Tanto a psoríase quanto o Asperger isolam o paciente e esses acometimentos acabam tendo vieses lúdicos no romance, expõem as personagens a um extremo. Isso gera uma identidade justificada entre as duas, uma cumplicidade apressada e terna, uma aposta. Vivenciar um relacionamento, eu não tenho dúvida, depende muito da coração de apostar, de se jogar de cabeça – é isso que Narelle e Anna fazem. É um pouco mais do que isso, mas não quero estragar a leitura de que esteja com vontade de encarar o livro.

4) Até que ponto o fato dos livros do projeto Amores expressos serem trabalhos de encomenda, contratados com a intenção de serem adaptados para o cinema, influenciou na construção do romance?

Nunca perdi de vista que o propósito principal dos Amores expressos foi, e continua sendo, revelar histórias que possam expressar singularidade e caráter a ponto de serem recontadas a partir do formato longa-metragem (penso que Ithaca Road daria um bom longa de baixo orçamento, pois é uma história simples, rápida, contada a partir de uma personagem inquieta, carismática etc), mas isso não pautou minhas escolhas narrativas. Imagino que haja poesia e estranheza numa quantidade suficiente para que se identifique em seu resultado peso literário e alguma originalidade também. Pesquisei intensamente durante dois anos sobre Asperger para conceber Anna e trabalhá-la dentro de um contexto que fizesse sentido para mim e também para o leitor que conheça ou não o tema. Tudo que se resolve satisfatoriamente no plano literário, mesmo que eventualmente, como você destaca na pergunta, pode ser adaptado para o cinema ou para a televisão.

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