Porto Alegre anabolizada

Correspondência

17.01.12

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JP,

Você não tem que pedir desculpas por nada. Na verdade, sendo bem sincero, teria sido meio tenso você aparecer por aqui em novembro. Aquele foi um dos piores meses da minha vida. Meu quociente de escravidão acadêmica alcançou níveis inéditos: eram quatro horas de sono por dia, com direito a refeições na frente do computador e pausas ocasionais pra olhar em volta e sentir inveja do mundo e pena de mim. Mas já passou.

Tem sido bom morar aqui. Chicago é uma metrópole anã, ou um vilarejo com problemas de gigantismo. Você tem multidões, arranha-céus, trens suspensos, museus e parques e restaurantes e casas de show, mas por baixo de tudo isso o que se percebe é um clima meio interiorano, em que pessoas dão bom dia umas às outras, bares oferecem desconto para clientes vizinhos e a moça do supermercado gasta dez minutos tentando te convencer a acumular os cupons da promoção – “não porque eu trabalhe aqui, mas porque minha prima juntou 40 dólares e comprou um umidificador que é uma beleza”.

Esse cosmopolitismo fajuto me encanta. Chego a achar que é a única forma saudável de cosmopolitismo, conceito que no mais sempre me pareceu ligeiramente bocó. Chicago é uma espécie de Porto Alegre anabolizada e com trinta graus a menos. Não tem como ser ruim.

Meu réveillon foi meio furreca. Saímos com amigos queridos, mas acabamos festejando a virada num clube alemão onde uma banda tocava clássicos do rock em ritmo de polca. Falando parece divertido, mas a cerveja era quente e o clima era mais de festa de firma do que de desregramento e libertinagem. Acabamos a noite na casa de uns conhecidos, eu completamente bêbado vendo meu inglês se esfarelar enquanto tentava explicar a 3 gringos petrificados as diferenças de funcionamento entre a indústria cultural no Brasil e nos Estados Unidos. Não me pergunte como eu cheguei até aí. A Belle me dava uns cutucões de vez em quando, e eu percebia que estava falando há 15 minutos sem conseguir concluir nenhum raciocínio. Lamentável.

Saudades de você e dos nossos. Semana passada fiz um Skype com o Fabrício, que tava dando uma festinha em casa. Tava um caos, não dava pra entender nada, mas alguém pegou o computador e colocou na mesa da cozinha, e por uns minutos fiquei ali, vendo o pessoal esvaziando a geladeira e gargalhando de piadas inaudíveis. Foi melancólico e bom. Agora meus amigos começaram a se reproduzir, e dou uma sofridinha adicional por não estar vendo tudo acontecer. Mas aí lembro que, mesmo que eu estivesse em SP, não estaria vendo as pessoas como gostaria. E então tento pensar em outra coisa.

Sobre o seu balanço da década, sim, às vezes parece que o melhor é deixar tudo pra lá. Outro dia li uma entrevista do Antonioni em que o repórter perguntava se ele alguma vez ficava entediado. Resposta: “Não sei. Eu nunca olho pra mim mesmo”. Não estou sugerindo que a gente tenha um desprendimento desse quilate – desconfio, aliás, que nem o Antonioni tivesse -, mas achei uma frase boa pra se guardar. Tenho convivido com muita gente mais jovem que eu (mais velha também, mas isso não vem ao caso), e às vezes me vejo fazendo essa matemática do que-catzo-tem-sido-a-minha-vida, entre outros mimimis.

Viver exige atenção demais, João. É preciso fazer um exercício filho da mãe pra conseguir escapar de algumas armadilhas mentais, das seduções do cinismo, do ressentimento, da autopiedade, de todas as ferramentas que a gente usa pra se esquivar dos nossos inferninhos particulares. Não dá pra se levar muito a sério, e nesse sentido aquela temporada em Paris ainda me ensina muita coisa, a gente rindo de tudo, das nossas pequenas desgraças, do tamanho relativo de todas as coisas, do homem com cheiro de enxofre que um dia entrou no último boteco de Paris – aquele que o Cortázar tanto adorava – e a fedentina obrigou o dono do estabelecimento a sair de trás do balcão e borrifar spray de lavanda nas paredes. Aliás, ainda existe o Old Navy?

Enfim, meu. Não analisa não. Você tem meio romance pela frente – quer coisa mais inútil e formidável do que ter um romance pra terminar?

Abração,

Chico

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