Pós-2014: a arquitetura das novas arenas

Arquitetura

17.06.13
Arena da Amazônia (Manaus)

Arena da Amazônia (Manaus)

O projeto e a construção dos estádios da Copa inserem-se no estado de êxtase generalizado em que o Brasil se encontra desde 2007, quando se anunciou que o país  sediaria o campeonato. São 12 arenas ao invés de oito, campos demolidos às pressas, brigas para definir o clube que receberá os jogos, acidentes em coberturas recém-inauguradas e uma verdadeira corrida maluca para garantir o posto de cenário da final ou da abertura do torneio. É praticamente impossível dar conta de cada manobra política, de cada ida e vinda, esmiuçar em detalhes as vicissitudes governamentais e privadas que fizeram a situação se assentar do modo mal planejado que se encaminhou.

A um ano do início desse evento de proporções mundiais, os estádios surgem no mapa com fotogenia, apesar da execução apressada. Como muitas das obras estão em andamento, ainda é cedo para uma análise geral da arquitetura. Seis arenas já foram inauguradas: o Mineirão, em Minas, o Maracanã, no Rio, o Castelão, em Fortaleza, o Fonte Nova, em Salvador, o Nacional Mané Garrincha, em Brasília, e a Arena Pernambuco, no Recife. A partir delas – e do andamento das outras – já começa a se consolidar uma série de questões e debates sobre como a forma dos estádios contribuem para a compreensão geral de um capítulo marcante da arquitetura nacional na Nova República, o frenesi da Copa do Mundo.

São muitas obras, em diferentes cenários. Independente do que resultar dos projetos, a relevância é imediata, e seu estudo pode mostrar como voltamos mais uma vez a antigas questões de projeto dentro da realidade do país e de suas capitais.

Definidas as cidades-sede, recaiu sobre elas um senso de urgência pela modernização, uma capacidade de se adequar ao padrão internacional. Este dever apareceu na mídia de um modo geral, sendo eventualmente abraçado pelo governo em documentos oficiais como, por exemplo, no da “Subcomissão de Fiscalização da Copa de 2014” da Câmara dos Deputados, na qual seu presidente, Silvio Torres, dizia: “Ao assumir a tarefa de acolher, em 2014, a Copa do Mundo, o Brasil terá a obrigatória tarefa de realizar múltiplas obras para acolher uma demanda a maior conformada por milhares de turistas internacionais que desembarcarão no país.” Nesta onda, aeroportos, hotéis, corredores de ônibus e tantos outros setores dos municípios correm atrás de um prejuízo funcional par dar conta da “obrigatória tarefa”.

No caso dos estádios, a FIFA sintetizou suas exigências num “Caderno de Encargos”, um agregado de diretrizes de projeto. O caderno tem muitas considerações detalhadas acerca de fluxos de pessoas, controle de segurança, projetos-padrão dos vestiários e alas técnicas. Graças a ele excluíram-se as arquibancadas gerais e impuseram-se as coberturas de toda a torcida.

O manual, entretanto, é um compêndio de orientações de senso comum que deixam certa liberdade para a escolha do projeto arquitetônico do estádio. “As regras são praticamente as mesmas que seguíamos no nosso escritório há anos”, diz Eduardo de Castro Mello, autor do Estádio Nacional Mané Garrincha e proprietário de um dos escritórios mais especializados em arquitetura esportiva do Brasil.

O volumoso caderno da FIFA exibe exigências técnicas que pouco impõem na plástica final do edifício. Não existia aos arquitetos das arenas limitação ao partido de seus projetos que não as normativas usuais em qualquer contrato. A mídia, por sua vez, intrometeu-se pouco em questões da arquitetura dos edifícios quando estas não tangenciaram os cronogramas de obra – nem mesmo a especializada. Talvez por isso, os profissionais selecionados nos processos licitatórios foram quase todos notórios pelo acervo técnico, prevalecendo a noção de expertise.

A maior parte desses arquitetos percebeu que, mesmo nas grandes capitais, a implantação de arenas com mais de quarenta mil pagantes tem um impacto de escala urbana. Apresentaram junto aos projetos de estádios um plano-diretor mais ou menos amplo da área onde intervinham: seja no desenho de equipamentos auxiliares, como centros de convenções e praças abertas, seja com intervenções mais amplas.

Arena das Dunas (Natal)

Arena das Dunas (Natal)

O escritório gaúcho Hype Studio desenhou toda a zona lindeira do Beira-Rio, à margem do Guaíba, enquanto o consórcio que desenhou a Arena das Dunas em Natal previu um megacomplexo de 45 hectares em volta do estádio. Salta à vista neste assunto a cuidadosa análise da Vigliecca e Associados no projeto da Arena Castelão, em Fortaleza, na qual chegou-se a desenhar um plano-diretor para o bairro e cercanias do Parque do Cocó, assumido como pólo de expansão da cidade, colocando o estádio em reforma como um gerador de urbanização.

“No início a FIFA achou bom, o governo achou bom (o plano- diretor proposto), mas no fundo todo mundo queria era o estádio,” diz Hector Vigliecca, titular do escritório que leva seu nome, preocupado com os rumos futuros da Arena Castelão. Com os prazos exíguos e a constante dúvida acerca da possibilidade de atender à demanda da Copa, qualquer urbanismo que não fosse logística – acesso e controle de pessoas, hospedagem, escoamento de pessoal – foi colocado em segundo plano.

Assim as arenas se tornaram enormes peças isoladas e, após a Copa, correm o risco de subutilização por serem programas gigantescos, sem interfaces de seu impacto na cidade, feitos sem grande debate acerca de sua forma final. Uma equação que faz jus às preocupações acerca da criação de “elefantes brancos”.

Nas cidades maiores, algumas terão este efeito mitigado pela implantação em grandes espaços abertos, como o Mineirão, que já tinha uma posição privilegiada no complexo da Pampulha, ou o Mané Garrincha, pela posição próxima ao Eixo Monumental de Brasília. Outros são implantados em bairros pouco adensados, como a Arena Castelão, no bairro de Castelão, ou a Arena das Dunas, em Lagoa Nova.

Se por um lado o planejamento urbano foi subtraído no desenho dos estádios da Copa, o atendimento às requisições técnicas e logísticas de construção do estádio foi atendido à risca na maior parte dos casos. Dilma Rousseff elogiou o feito em seu programa de rádio, como uma prova de que “o Brasil é capaz de aceitar desafios e cumprir os compromissos que assume pontualmente.”

Entretanto, para se fazer ponderações acerca da importância da arquitetura no suceder-se da Copa de 2014, é lícito dizer que nenhuma delas enfrentou amplamente os problemas que existiam para além da eficiência do prédio.

Estádio Nacional Mané Garrincha (Brasília)

Estádio Nacional Mané Garrincha (Brasília)

Esses doze estádios estão inseridos num dilema histórico da arquitetura brasileira, que desde a perda da autoridade atribuída para desenhar enormes parcelas da cidade, como o Aterro do Flamengo e a própria cidade de Brasília, tem de lidar com a questão das cidades contemporâneas limitando-se ao edifício. Num país no qual o planejamento urbano está sempre em crise e em busca de modelos, toda arquitetura é um “elefante branco”. Todo novo marco é lançado numa via estreita ou sem acesso amplo à transporte público, sofre com a falta de gestão e manutenção e está sempre correndo o risco de se tornar uma ruína prematura. Não se trata de fazer o edifício se bastar, mas de colocar-se na paisagem como uma peça estranha que abre novas perspectivas, expõe a cidade e coloca-se em diálogo com o entorno para criar horizontes de transformação diferentes da mera valorização imobiliária.

O problema é antigo e não é peculiar à Copa, mas lamentavelmente não foi colocado em primeiro plano nessa oportunidade. É certo que, pela área de dispersão, todo entorno de estádio virou uma praça, mas em poucos existe permeabilidade com a arena – como, por exemplo, no Mané Garrincha. Sobre a forma das construções dos estádios, contudo, as soluções foram alheias. Uma parte justificou seus desenhos por questões outras à cidade, como a viabilidade técnica, atendimento a parâmetros de sustentabilidade. Ou, no caso de Minas Gerais, de patrimônio histórico. Uma outra parte resolveu as coberturas com citações regionalistas, como no caso da Arena da Amazônia, que cita uma cesta de vime, ou às vezes demasiado literais, como a colunata do Estádio Nacional Mané Garrincha, comparada à do Palácio Itamaraty. Uma terceira linha adotou o formalismo, como nos pilares do Beira-Rio, ou as coberturas inclinadas na Arena das Dunas.

Uma oportunidade perdida? A arquitetura, como qualquer forma de arte, não impõe regras, mas parece que as arenas não colocaram nada de novo na história da profissão no Brasil, arriscando-se a passarem desapercebidas a longo prazo ou a serem lidas pelos cidadãos das cidades-sede com a mesma frieza com que se vê uma subestação elétrica ou uma usina.

O descompasso entre debates estéticos e técnicos pode parecer exemplar da dicotomia historicamente atribuída ao Brasil entre espontaneidade idílica e rigor progressista, um debate que a Copa do Mundo levou ao limite. Especialmente pelo tema adorado que é o futebol, esporte que cada vez mais deixa o romantismo outrora presente nas resenhas de Nelson Rodrigues e ganha contornos de negócio rentável, regulamentado e, no limite, elitizado.

No que concerne à arquitetura, este não é o ponto. Embora o escritório alemão GMP tenha prestado consultorias e eventualmente assinado alguns estádios, o Brasil mostrou que tem condições de lidar com o tal padrão internacional. Poderíamos ter tido uma visão diferente do desafio: ao invés de  atender a uma demanda, tínhamos condições de ter articulado um salto real de desenvolvimento em nossas cidades, agregando novas perspectivas às áreas do entorno através dessas arenas. Ao futebol criativo que mostramos no século XX, igualmente existiu um pensamento de projeto de edifícios muito poético, lúcido e igualmente eficiente. Por que não se amparar nele para resolver as adversidades gerais que estavam fora do Caderno de Encargos?

* Rafael Urano Frajndlich é arquiteto formado pela Faculdade de Arquitetura da USP, na qual é doutorando. Escreve sobre cidade e arquitetura em diversas revistas especializadas.

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