Quarto de despejo: “flor incrível e pura”

Por dentro do acervo

11.03.14

No dia 14 de março de 2014 o IMS-RJ comemorou o centenário de nascimento da escritora Carolina de Jesus, Conhecida por Quarto de despejo (1960), com o evento Carolina é 100. Além da exibição do documentário inédito Favela: a vida na pobreza, que aborda a vida de Carolina de Jesus na favela do Canindé (SP), houve um debate com Audálio Dantas, descobridor da autora, e da professora e crítica literária Marisa Lajolo.

Quatro anos depois do lançamento de Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, publicado em 1960, o crítico literário Otto Maria Carpeaux pensava sobre a qualidade literária dos best-sellers de fundo sociológico, entre os quais Quarto de despejo. A trajetória dessa obra, de sucesso retumbante, contava com números invejáveis: seriam 80 mil exemplares vendidos no Brasil e 15 idiomas para os quais seria traduzida.

“Como e até que ponto pode um romance servir de documento?”, pergunta Carpeaux no artigo intitulado “Romance e sociologia”, publicado no Correio da Manhã de 18 de julho de 1964. Naquele ano, afirma o crítico, o mundo parecia exigir não o “romance de alta categoria, mas o documento social, verídico”, o que em parte explicaria o sucesso do diário da autora nascida na cidade mineira de Sacramento e mais tarde moradora da favela do Canindé, em São Paulo, de onde saía diariamente para ganhar trocados como catadora de papel. Mas Carpeaux avalia: “Como meros documentos apreciamos obras não-literárias como Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, ou Uma aldeia anatólica, do turco Mahmud Makal”. Ao final do artigo, conclui que a importância sociológica de um romance, como documento, depende do seu valor literário.

Cinquenta anos depois do texto de Carpeaux, volta-se a falar em Quarto de despejo e no fenômeno Carolina de Jesus, cujo centenário de nascimento, no dia 14 de março de 2014, foi lembrado em evento no Instituto Moreira Salles, guardião de pequena parte do arquivo da escritora: dois cadernos manuscritos, cujo conteúdo está parcialmente publicado. A um dos cadernos a escritora intitulou Um Brasil para os brasileiros: contos e poemas. O outro é coletânea do mesmo gênero, sem título.

Carolina de Jesus foi descoberta pelo jornalista e escritor Audálio Dantas, que em 1958 esteve na favela do Canindé como repórter da Folha da Noite para fazer uma matéria. Não demorou a chegar até a moradora da rua A, barraco 9, que escrevia um diário em pedaços de papéis coletados nas ruas da cidade. Audálio organizou as muitas páginas em que ela expunha o sofrimento cotidiano dos moradores, apresentou-a à editora Francisco Alves e dois anos depois, sob refletores e na condição de escritora, ela autografava seu livro a um grupo integrado por literatos como Clarice Lispector, que publicara A paixão segundo G.H. e A legião estrangeira.

Os milhares de livros vendidos no primeiro mês após o lançamento mudaram a rotina de Carolina de Jesus. Não podia ser diferente. Jantares, hospedagem no Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, a convite da revista americana Life, viagem à Argentina e um novo livro, Casa de Alvenaria, de 1961, a que se seguiriam outros.

Por ocasião do lançamento de Casa, Paulo Mendes Campos publicou na Manchete o artigo “Espécie de poema desentranhado do livro Casa de alvenaria, da ex-favelada Carolina Maria de Jesus”. Destaca aí alguns trechos do diário que, como se depreende pelo título, trata do outro tipo de moradia que a autora tinha conquistado. Não mais o barraco da favela do Canindé, mas uma casa com sala de visitas de verdade. Não mais o catre do barraco 9, que ela chamava leito para simples efeito literário, mas uma cama decente, com colchão novo.

“A realidade é muito mais bonita do que o sonho”, escrevera ela em Casa de alvenaria. A realidade podia ser mais bonita, mas lhe exigia o que o sonho preservava: competência para viver um degrau acima no seu status social. Carolina perdeu-se na nova condição de escritora. À inabilidade para lidar com o dinheiro que o primeiro livro lhe rendia somou-se o fracasso das publicações posteriores. Os refletores se apagaram sem aviso, assim como sem anúncio desapareceu o glamour da vida de escritora de sucesso. Em pouco tempo voltou à pobreza. Morreu em 13 de fevereiro de 1977, na casa de um dos filhos, longe da fama que conquistara por pouco tempo.

Pouco depois de sua morte, um outro Otto, dessa vez o jornalista e escritor Otto Lara Resende, rendia-lhe homenagem em artigo intitulado “Luzes no quarto de despejo”, publicado em O Globo de 15 de fevereiro de 1977. “Inteligentíssima”, escreve ele, Carolina de Jesus “tinha essa mistura de raiva e ternura que leva à vã tentativa de cuspir o que bloqueia a garganta e ameaça matar por asfixia, se não for dito”.

Além dessa mistura que, segundo Otto, levava Carolina a escrever, havia nela uma convicção literária anterior à escrita. Semianalfabeta, queria ser escritora, e queria ser escritora publicada em inglês. Conseguiu. Não só em inglês, mas em francês, alemão, holandês, italiano, tcheco, húngaro, polonês, russo e até japonês, entre outras línguas com as quais jamais deve ter sonhado. A força de seu ideal foi mais longe do que pôde supor, e hoje determina que a estante da biblioteca de apoio ao seu arquivo no IMS guarde, além da brasileira, naturalmente, 17 edições de Quarto de despejo publicadas fora do Brasil.

Dentre as traduções, destaca-se a italiana, com prefácio do escritor e jornalista Alberto Moravia, que se refere ao livro como “flor incrível e pura”. Tratando Carolina como questa donna geniale, destaca-lhe a fé na cultura, e reconhece que a autora de Quarto de despejo é tranquilamente convencida de que tem o mesmo direito à cultura que os ricos e privilegiados.

A questão da linguagem forçada não passou despercebida aos brasileiros, que se surpreenderam com o vocabulário estranho à sua formação escolar, encerrada no segundo ano primário: “Abluí as crianças, aleitei-as e abluí-me e aleitei-me”, escrevera ela em Quarto de despejo. No livro seguinte, fiel ao gênero diário, revidava: “Alguns críticos dizem que sou pernóstica quando escrevo “os filhos abluíram-se”, será que preconceito existe até na literatura? O negro não tem direito de pronunciar o clássico?”

Não faltou quem duvidasse da autenticidade do texto. Manuel Bandeira, citado por Eliana Castro e Marília de Mata Machado em Muito bem, Carolina, saiu em defesa da autoria do diário:

Muita gente tem me perguntado se acredito na autenticidade do livro. Querem atribuí-lo a trabalho de Audálio Dantas sobre notas, apontamentos de Carolina. Houve de fato algum trabalho de composição da parte de Audálio. Este declarou no prefácio que selecionou trechos dos cadernos de Carolina, suprimiu frases. Não enxertou nada. Acredito. Há nestas páginas certos erros, certas impropriedades de expressão, certos pedantismos de meia instrução primária, que são de flagrante autenticidade, impossíveis de inventar.

Não só Bandeira se deteve nas “impropriedades de expressão” de Carolina. A professora Marisa Lajolo, que contribuiu com um texto para a Antologia pessoal de versos de Carolina de Jesus, analisa mais detalhadamente o emprego de “lantejoulas do quilate de infausto, cilícios, ósculo, etc.”.

A edição, póstuma, foi organizada por José Carlos Sebe Bom Meihy, que contou com textos de acadêmicos, seus pares, e colaboração do poeta Armando Freitas Filho, responsável pela fixação do texto. Foi publicado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1996, onde Carolina Maria de Jesus não soube que ia chegar.

Pesquisa e aquisição das edições estrangeiras: Julia Menezes

Tratamento das imagens: Laura Klemz

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