Quatro cabeças autolimpantes

Cinema

09.04.12

Para falar de Hal Hartley, inevitavelmente recorro a uma ou duas anedotas pessoais. É algo que parece inevitável, pois os filmes de Hartley não apenas suscitam uma relação pessoal com o espectador, como exigem certo nível de identificação para que funcionem.

Recentemente, recomendei um amontoado de filmes para uma garota em Porto Alegre que, apesar de grande cinéfila, por acidentes do destino, nunca tinha assistido a certos clássicos do cinema independente norte-americano, como Jovens, loucos e rebeldes, de Richard Linklater, e Swingers, de Doug Liman. Entre os da minha lista de recomendações se encontrava Flerte, filme de 1995 dirigido por Hal Hartley. Ela assistiu ao filme e afirmou não ter gostado muito. Incomodado com isso, decidi rever alguns trechos no YouTube, em dúvida se eu também continuaria gostando tanto de Flerte. Resultado: descobri que sigo igualmente apaixonado pelo cinema de Hartley. Tal conclusão, por sua vez, me levou a pesquisar no google o que diabos o cineasta andava aprontando, e por que ele estava tão sumido. Foi então que me deparei com uma página tristíssima: Hartley estava recorrendo ao Kickstarter, o sistema de financiamento coletivo, para angariar míseros quarenta mil dólares que permitiriam o lançamento do DVD de seu último filme. Ele obteve cinquenta mil. Pode parecer bastante, mas outros projetos do Kickstarter, como um novo jogo de adventure dos criadores de Monkey Island e Grim Fandango, arrecadaram milhões de dólares em poucos dias.

É oficial: Hal Hartley é um cineasta que está em baixa. Isso não era uma novidade completa para mim. Quando fui convidado para escrever um conto baseado em um diretor para a coletânea 24 letras por segundo, escolhi Hal Hartley. Péssima escolha: nas sessões de autógrafo, todos me perguntavam quem era esse tal de Hartley e por que eu não havia escolhido alguém mais popular. Mas, somente ao ver a página do diretor no Kickstarter, me dei conta do ostracismo no qual ele havia caído. A tristeza não está apenas no fato de que a carreira do diretor naufragou e ele não consegue mais realizar os seus projetos. O pior é que até as suas maiores obras são fantasmas nas locadoras brasileiras e estão fora de catálogo até em lojas internacionais de DVDs.

Na casa de meu amigo André, um sujeito que constantemente diz que tenho péssimo gosto para cinema (apesar de ambos sermos entusiastas de Brian de Palma), contei a ele sobre o projeto de Hartley no Kickstarter. André, estarrecido, tirou o toca-discos de cima de um misterioso caixote de metal com o logotipo do Batman que mantém na sala e abriu o caixote, revelando um baú de preciosidades. Dentro do retângulo metálico se encontravam diversas fitas VHS do cineasta americano, como Simples desejo e The unbelievable truth. “VHS”, ele comentou, “é a única maneira de ver Hal Hartley”. Então, depois de conversarmos sobre tudo o que adorávamos nos filmes dele, colocamos a fita no videocassete de quatro cabeças autolimpantes.

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Por que Hal Hartley foi esquecido? Por que o sujeito que foi um dos inventores do cinema independente americano, ao lado de Quentin Tarantino, Kevin Smith e Richard Linklater não tem o mesmo prestígio? Seria por causa da artificialidade teatral de seus filmes? No universo de Hartley, os personagens não travam diálogos: eles encenam discussões filosóficas. Cenas inverossímeis são recorrentes, como o momento em Flerte no qual o protagonista entra em um banheiro público, explica a sua situação amorosa e recebe opiniões complexas de pessoas urinando e defecando:

http://www.youtube.com/watch?v=IxnRNEuNW8Y

Será que a forma de fazer um cinema montado em referências – como é o caso da obra de Hartley, com suas citações a Godard (personagens interrompem o que estão fazendo e dançam como em Bande à part) e clássicos da literatura – ficou datada? Será que as explorações metalinguísticas (como em Flerte, no qual pedreiros de uma construção discutem a intenção do cineasta) parecem kitsch para as novas audiências?

Hal Hartley, na década de 90, era sinônimo de arte independente, ou, como se abrevia hoje em dia, indie. A estética de seus filmes estava diretamente ligada ao que estava sendo produzido em termos de música independente: Yo La Tengo (Hartley, por sinal, dirigiu um clipe deles), Sonic Youth (trilha de Hartley), Sleater-Kinney, Built to Spill… Pode-se afirmar que essas bandas também foram em grande parte esquecidas pelos ouvintes, porém começo a implicar com o termo “esquecido”. Talvez não seja uma questão de memória. O que pode ter ocorrido é que muitos membros da nova geração de indies não conhecem ou ignoram esses nomes. A prova? Uma comparação de número de ouvintes dessas bandas no site last.fm, que registra as estatísticas de fãs de música do mundo todo.

É claro, quem acompanha há mais tempo a cena independente pode, de vez em quando, sentir vontade de levantar um bastão e perguntar aos brados o que foi que aconteceu. Não se trata necessariamente de nostalgia – eu, por exemplo, simpatizo com muito do que é produzido em termos de cultura independente nos dias de hoje (apesar do ramo pasteurizado que surgiu, tanto no cinema como na música, que tenta fazer do indie um gênero bobão de adolescentes esquisitinhos). Além disso, assim como outros entusiastas de Hartley, sou jovem demais para sofrer de nostalgia. O que está em jogo é apenas uma reflexão acerca de como funciona a memória e o armazenamento de informação de certos nichos de audiência. Será que os sucessos independentes de hoje, como Animal Collective, The National e LCD Soundsystem não cairão no mesmo ostracismo daqui a uma década? E, uma especulação mais importante: algum dia o cinema de Hal Hartley será redescoberto? Eu gostaria muito de assistir a Flerte em Blu-ray ou DVD. Ainda bem que, até lá, ainda poderemos contar com as fitas de videocassete.

* Na imagem da home que ilustra esse post: o cineasta Hal Hartley.

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