Quem conta a guerra são as mulheres

Colunistas

26.07.16

“Quem conta a guerra são as mulheres”, escreve Svetlana Aleksiévitch, prêmio Nobel de Literatura, no seu A guerra não tem rosto de mulher, ela mesma uma mulher contando a guerra em cinco volumes, dois dos quais recém-traduzidos no Brasil e lançados pela Companhia das Letras. Se das personagens russas para quem Sveltlana dá voz, ouvindo memórias que não entraram para a  história oficial da Segunda Guerra; se seu trabalho parece concretizar aquilo que o filósofo Walter Benjamin chamou de “fim da narrativa”, justamente diagnosticando, no trauma coletivo da Primeira Guerra, o fim da possibilidade de compartilhar experiências; e se esse cenário de pensamento europeu pode nos inspirar de alguma forma, talvez seja homenageando as mulheres que contam a nossa guerra cotidiana, essa que a cidade esconde por trás dos muros coloridos dos anéis olímpicos.

Pesquisa da Anistia Internacional mostra que os homicídios no Brasil correspondem a 56.337 vítimas da violência policial. Deste total, 54% são jovens (de 15 a 29 anos), 90% são homens e 77% são negros. São dados de 2012, mas continuam atuais, sobretudo se pensarmos nos 111 tiros disparados contra cinco jovens negros em Costa Barros, cujas mães estão tentando contar essa guerra do Estado contra a população jovem negra. A morte de Joselita, mãe de Betinho, uma das vítimas de Costa Barros, oito meses depois do assassinato do filho, talvez confirme a hipótese de Benjamin sobre o fim da possibilidade de narrativa a partir do silêncio do trauma. Para os amigos, ela morreu de tristeza. Diante do Estado, ela morreu sem obter nem reconhecimento (os PMs foram soltos) nem reparação (nenhuma indenização não foi paga).

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Mãe de uma das vítimas da chacina de Costa Barros
Foto: Júlio César Guimarães

Em artigo sobre o que resta da ditadura militar, a filósofa Jeanne Marie Gagnebin articula os mortos do passado e os crimes do presente, argumentando que “o silêncio sobre os mortos e torturados do passado, da ditadura, nos acostumou a silenciar sobre os mortos e os torturados de hoje”. Ou seja, para fazer o luto é preciso falar do luto, o que no caso dos mortos pela polícia, como no caso dos jovens de Costa Barros, implica também denunciar a violência do Estado. Entre os anos 2001 e 2011, o Rio de Janeiro registrou cerca de dez mil mortes em confronto com a polícia fluminense, conforme levantamento da OAB/RJ, muito bem nomeado de “Desaparecidos da democracia”. Sabemos que na Argentina são as Mães da Praça de Maio as mulheres que contam a guerra das ditaduras militares contra seus filhos. Sabemos que no Brasil foram as mulheres que lutaram pela Lei da Anistia, a fim de trazer de volta ao país seus maridos e filhos.

Nem sempre percebemos a semelhança entre os mortos da ditadura e os da democracia. Nesse sentido, a Chacina de Acari talvez seja o caso mais exemplar: os corpos dos 11 jovens mortos há 25 anos nunca foram encontrados e, como nos ensina a tradição e o belo filme O filho de Saul, sem corpo não há túmulo, sem túmulo não há luto, sem luto é como se não tivesse havido vida. É possível andar mais para trás no tempo e contar a história de Marli Pereira Soares, que em 1979 viu seu irmão ser assassinado pela PM. Ali, juntavam-se as duas arbitrariedades: a da ditadura militar e a da polícia militar. Marli passou toda a década de 1980 lutando por justiça para o seu irmão. Suas denúncias ocuparam as páginas dos jornais praticamente todos os dias. Foi ameaçada, humilhada, e não se dobrou. Até que Marli teve o filho, Sandro, 15 anos, assassinado também pela PM. De fato, quem conta a guerra são as mulheres, mas algumas não sobrevivem à guerra para contá-la.

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