Quem é Joseph Anton?

Literatura

24.10.12

Existe uma espécie de autoridade particular em todo texto autobiográfico, como se estivesse acrescido de uma credibilidade extra somente por ser a visão daquilo que se chama “vida real”. Especialmente se é a vida de um escritor mundialmente famoso como Salman Rushdie, que lançou recentemente o livro Joseph Anton: Memórias (Companhia das Letras, tradução de José Rubens Siqueira e Donaldson M. Garschagen). Por mais que um leitor possa se informar sobre a vida e a carreira de um escritor que admira – além de, evidentemente, ler seus livros -, o momento no qual o próprio escritor decide contar sua vida é sempre um motivo de expectativa.

No caso de Rushdie, o cenário é mais complexo. Não se trata apenas de uma vida corriqueira, doméstica, com altos e baixos de ordem sentimental ou familiar. A história de sua vida é indissociável de um fato central: a sentença de morte que recebeu, em 1989, do aiatolá Khomeini. É a partir desse fato que se organizarão as amizades literárias de Rushdie, sua dinâmica afetiva e familiar, sua rotina, seus contatos, suas viagens, seus anseios e medos, suas possibilidades e horizontes. Essa intrincada organização é que forma a base de Joseph Anton. Desde a perspectiva específica até a mais geral, a vida de Rushdie espelha a antiga e ambivalente tensão entre Ocidente e Oriente (uma linha de força que abarca desde o Divã Ocidental-Oriental, de Goethe, até Istambul, de Orhan Pamuk).

Nesse sentido, tanto a obra recente de Rushdie quanto sua vida fragmentada lembram a trajetória de Edward Said, também ele autor de uma excelente autobiografia (Fora do lugar, que saiu no Brasil em 2004). “Joseph Anton” foi o codinome escolhido por Rushdie como medida de segurança depois da sentença de morte, um nome que é resultado da mistura de Joseph Conrad com Anton Tchékhov, dois de seus escritores favoritos. Conrad, também ele uma figura representativa do trânsito entre nações, ideologias e línguas, é um dos muitos fios que ligam não apenas as ideias de Rushdie e Said sobre o mundo mas também suas respectivas escrituras memorialísticas. O primeiro livro de Said, de 1966, chama-se justamente Joseph Conrad and the Fiction of Autobiography.

A ficção da autobiografia: precisamente aquela que Rushdie coloca em cena quando, ameaçado de morte, transforma-se em uma espécie de ser híbrido – Joseph Anton – feito de literatura, formado a partir do desejo (sempre incompleto) de ser outro. Conrad serve a Said para a elaboração de uma tese: as minúcias da vida de Conrad (viagens, contos, romances, cartas) são uma série de máscaras marcadas pelo atravessamento entre biografia e invenção – e, em última instância, também pelo embate entre “civilização” e “barbárie” (essas ideias serão desenvolvidas por Said no clássico Orientalismo, de 1978). Para Rushdie, por outro lado, Conrad é um experimento de transformação, de fragmentação do eu, o que faz de Joseph Anton uma sorte de transtorno dissociativo ficcionalmente controlado.

As memórias de Rushdie funcionam também como um livro de suspense, como uma narrativa detetivesca, e o acúmulo de eventos por vezes rocambolescos (fugas no meio da noite, atentados, vigilância permanente) torna ainda mais efetivo o sentimento de apreensão que se desenvolve com a leitura. Contribui para isso o procedimento narrativo que Rushdie escolheu: narrar a própria vida na terceira pessoa, de um ponto de vista distanciado, ao mesmo tempo em que resgata fragmentos de diários – anotações realmente feitas por Rushdie, fundamentais, segundo ele, para resgatar os eventos de mais de vinte anos atrás. Além do suspense imediato da caça muçulmana a sua cabeça, há o suspense subterrâneo da busca por uma identidade e uma memória que Rushdie reconhece como ilusórios, incompletos.

Em meio a tantas desventuras e tendo em vista a carga política do livro, o leitor pode deixar passar o apuro estilístico de Rushdie e sua incrível habilidade no manuseio das temporalidades que cruzam a história. “Estou travando a batalha da minha vida”, ele escreveu em seu diário, “e na semana passada comecei a sentir que estou ganhando. Todavia, o medo da violência permanece”. Assim como J. M. Coetzee – que se ocupou de sua biografia em uma trilogia, Cenas da vida na província, composta pelos livros Infância, Juventude e Verão -, Rushdie, em Joseph Anton, joga constantemente com essas ilusões de ótica diante do tempo e do passado, mesclando a reflexão do presente com o resgate daquilo que foi vivido outrora. Na própria construção formal do livro se dá o jogo de gato e rato entre a identidade e a história (ficção como autobiografia, autobiografia como ficção, etc).

As memórias de Rushdie oferecem acesso, portanto, a um trabalho estético de grande porte e, em igual medida, a um debate permeado por temas fundamentais para a contemporaneidade: tolerância, liberdade, exílio, mobilidade dos corpos e das fronteiras, entre tantos outros. Mais do que uma afirmação de autoridade diante da dita “realidade”, ou um manifesto de autonomia com relação a esta, Joseph Anton talvez seja – assim como as memórias recentes de Joan Didion ou de David Rieff – uma celebração das potencialidades revolucionárias da ficção, ou ainda, um relato sobre a possibilidade da literatura nos encaminhar em direção à liberdade e à emancipação do espírito e da consciência. Como se o exercício da escritura fosse um vasto compartilhamento de vozes, um contínuo atravessamento de presenças e ausências, como num museu (ou uma biblioteca) sem muros ou limites.

* Na imagem que ilustra o post: Salman Rushdie, em 1988.

* Kelvin Falcão Klein é autor de Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas (Ed. Modelo de Nuvem, 2011).

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