Quem te viu, que te vê!

Por dentro do acervo

28.11.12

Terá o pesquisador ideia do caminho feito por uma simples folha de papel e de como foi preservada para chegar até suas mãos? Quando se trata da certidão de nascimento da escritora Elisa Lispector, já se sabe, de saída, que o documento cruzou o Atlântico, provavelmente na mala de Pinkhouss ou Mánia Lispector, os pais de Elisa, Tania e Clarice Lispector que, em 1922, desembarcaram em Maceió, fugindo da guerra civil na Rússia (1918-1921).

À exceção da Tania, que manteve o nome de nascimento, ao chegar ao Brasil as outras duas irmãs, Leia e Haia Lispector, passaram a ser chamadas de Elisa e Clarice Lispector, respectivamente.

Do russo, língua em que é lavrada a certidão de Elisa, o simples mortal nada  entende, a não ser a data: 24 de julho de 1911. Mas, para salvação dos biógrafos, o texto que registra a cidadã ucraniana, nascida na aldeira de Sawranh, foi traduzido em 13 de dezembro de 1926.

É dever de uma instituição de guarda preservar seu acervo; nenhuma novidade nisso. A surpresa está em, alguns casos, deparar com a volúpia de um  pesquisador, como aconteceu com a professora Nádia Gotlib, talentosa especialista que, além de ter publicado a excelente fotobiografia de Clarice, prepara livro da mesma natureza sobre Elisa. Ela preferiu, para ilustrar sua nova obra, usar a certidão no estado precário em que chegou ao Instituto Moreira Salles, em 2007, em meio a outros 45 documentos pessoais do arquivo de Elisa Lispector.

As dobraduras quase o partiram em quatro partes. Alguém da família, sem dúvida, por zelo, tratou de emendá-lo com fita adesiva e cola, ignorando que essa prática constitui agressão das mais violentas ao papel, já quebradiço, amarelecido, manchado e rasgado. Felizmente o conteúdo foi preservado, a despeito dos rasgos nas bordas.

Um exame técnico feito pela professora Maria Luisa Soares, que presta serviço de restauração ao IMS e prefere ser chamada de Kuka, detectou a baixa qualidade da estrutura do papel, em grave estado de degradação. Feito o diagnóstico, e sem perda de tempo, passou-se ao trabalho de higienização, durante o qual foi retirada a fita adesiva e removidas as marcas de tinta, além de outras sujidades. Para finalizar, procedeu-se a uma velatura, que consiste em proteção ao documento a fim de lhe dar condições de manuseio sem comprometê-lo. Com uma cola especial (Tylose- Metil- hidroxietilcelulose-C\600) e o papel de arroz (Gampi-Schi\Silk Tissue-10g\m²) sobre uma superfície, o documento foi estabilizado com água filtrada e reparado minuciosamente.

A secagem levou 15 horas. Aqui está a certidão, literalmente nova em folha (de papel de arroz). Quem te viu, quem te vê!

Àquela altura, faltava a etapa do acondicionamento, crucial para dar  sobrevida ao documento. Fez-se envelope de papel Acid-Free, que, além de ser próprio para a conservação, permite fácil manuseio.

Muitos outros procedimentos como esse acontecem no Laboratório de Conservação, onde Kuka Soares e Francisco Bomfim fazem seus pequenos milagres diários.

Mas eu entendo a preferência de Nádia Gotlib pelo documento no seu estado original. Como pesquisadora, sei que a relação entre o investigador e seu autor pode ser tão íntima que permite algumas indiscrições, como a de exibir o papel em estado de degradação. Mais que isso, antes da restauração o documento expressa com mais força a ação do tempo e dos tratos. Ainda vai demorar – e eu certamente não viverei essa época – para que toda pesquisa seja feita nas telas, com digitalização da mais insondável precisão.

Os documentos de Elisa Lispector já foram restaurados e digitalizados em alta resolução, como devem ser para efeito de preservação. Mas ao vê-los nas telas do futuro não chegaremos tão perto da vida a que o papel se liga. Não sentiremos, nos dedos, a história de que são impregnados. Me perdoem os teóricos da informação, mas que se perde em emoção, isso se perde.

* Elvia Bezerra é coordenadora de Literatura do Instituto Moreira Salles.

Colaboração: Julia Menezes e Kuka Soares.

Agradecimentos a Bia Paes Leme, que cedeu espaço da Reserva Técnica Musical para que criássemos o Laboratório de Conservação, e a Janio Gomes, pelo empenho em equipá-lo.

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