Realismo e desejo

Colunistas

13.05.15

Assisti no mês passado à montagem de Ivánov, de Tchekhov, dirigida por Luc Bondy, no teatro do Odéon, em Paris. A encenação era irregular, mas alguma coisa no texto, que eu não conhecia, me fez perder o pé. Tinha a ver com o amor e o desejo.

Cena da peça Ivánov, encenada por Luc Bondy

“A verdade é clara e simples como o dia que Deus criou, qualquer criança a compreende, mas eu, mesmo as pessoas inteligentes não me compreendiam. (…) Sim, amei as pessoas, amei as mulheres, como nenhum de vocês, mas meu amor só durava dois ou três anos, enquanto minha alma preguiçosa não se sentisse esgotada, enquanto eu não tivesse a impressão de que o amor era uma bobagem, que as carícias eram repugnantes, que os pensamentos e as palavras ardentes eram velhas e vulgares. Eu me excitava rapidamente, assumia um fardo superior às minhas forças, e também fraquejava rapidamente, me desencorajava e de herói passava a covarde desprezível. Agora, tenho trinta e cinco anos, realizei menos coisas que um pardal, mas já estou exausto, não aguento mais, fui massacrado pelos meus feitos e sacrifícios insignificantes: não tenho fé, as paixões se apagaram, perdi as ilusões, estou doente. Por quê? As pretensões eram heroicas, mas as forças eram as de um verme”, Ivánov diz antes de se matar.  

Ivánov é a primeira peça encenada de Tchekhov. Foi escrita em duas semanas, depois de o autor estreante ser desafiado por um diretor de teatro a criar sua própria peça, em vez de ficar criticando a dos outros. A primeira versão causou furor e incompreensão na estreia em Moscou, em 1887. Pela violência da comédia que não fazia rir. Uma versão menos cáustica, com o sarcasmo domesticado pelo drama, foi consagrada dois anos depois, em São Petersburgo.

Ivánov é desses sujeitos que há aos milhares por aí, “o homem mais normal do mundo”, sedutor que ama sem amar, o oposto do acúmulo de amor não realizado de Tio Vânia. Quando a peça começa, Ivánov já é esse verme desiludido, indiferente a tudo, proprietário rural coberto de dívidas, enfastiado com a vida de província, mas realista e honesto com seus sentimentos. Está casado há cinco anos com uma mulher adorável, que ele amou (mas que já não ama) e que continua a adorá-lo. Por Ivánov, ela abriu mão de tudo, abandonou a família judia e se converteu ao cristianismo. Não tem mais nada nem ninguém no mundo. E, pra completar, está tuberculosa e desenganada.

Ivánov tem uma jovem admiradora na cidade, com quem acabará se casando logo depois da morte da mulher. Quando esta já está nos últimos dias, a moça aparece para visitá-lo. É uma humilhação que a mulher não pode suportar. Ela discute com o marido. É uma cena dantesca. Lá pelas tantas, ele pede que ela cale a boca. Ela não se cala. Ele diz que ela vai fazê-lo dizer coisas que ele não quer dizer. Ela continua. E aí, ele explode: “Judia filha da mãe!”, antes de se arrepender profundamente. O efeito é letal para todo mundo. É como se o próprio público tivesse levado uma bofetada. O automatismo da injúria revela o antissemitismo russo por trás da indiferença do personagem, que já não para de repetir: “Sou culpado! Como sou culpado!”.

O médico rural, indignado com o tratamento que Ivánov reserva à mulher, passa a peça inteira a lhe dar lições de moral. Tudo o que o médico tem a dizer a Ivánov é correto e ponderado, de modo que me identifiquei naturalmente com ele e com a sua retidão. Todo mundo tem sua ideia de justiça e acha que age pelo bem. Dias depois, li envergonhado, na correspondência de Tchekhov: “[O doutor Lvov] é o tipo de homem honesto, reto, inflamado, mas estreito e sem nuance. Desse tipo de gente, as pessoas costumam dizer: ‘É burro, mas honesto’. (…) Ele é o lugar-comum encarnado, a essência do progressista, (…) tem opinião formada sobre tudo. (…) Se o público sair do teatro achando que Ivánov é um crápula e o doutor Lvov, um grande homem, só me restará jogar a pena no lixo e me aposentar”.

A grandeza do realismo de Tchekhov vem dessa capacidade de fazer o mundo falar pelas suas complexidades, por ambiguidades e contradições, sem moralismos bidimensionais, sem opiniões formadas, substituindo a identificação com este ou aquele personagem por uma empatia difusa e generalizada.

A compreensão do realismo literário hoje, ao contrário, foi reduzida a um modelo sucateado, a serviço de uma estratégia de identificação, com claros objetivos comerciais, voltada à conquista de um público cada vez maior. Se fosse realmente realista, a literatura seria insuportável e não venderia nenhum exemplar. É claro que a realidade pintada nos livros pode ser terrível, mas há sempre um bom-mocismo de fundo, a boa intenção por trás do projeto do livro, a insistência numa ideia barateada de humanismo, que o mundo continua a contradizer.

O bem e o amor podem não vencer no final (como tampouco vencem na vida), mas formam o elemento capaz de seduzir e capturar a atenção do leitor por oposição ao mundo que o aterroriza. Nesse realismo quase consensual, os personagens que falam como o médico de Ivánov são os que mais chances têm de fazer o leitor se identificar com eles. São críveis, “como se fossem de carne e osso”. E a despeito de eventualmente serem atravessados por contradições (o que só corrobora sua credibilidade humanista), no final servem para compor um conjunto edificante, forjado em bons sentimentos e boas intenções, para a satisfação e a tranquilidade do leitor.

O crítico literário e ensaísta americano Leo Bersani escreveu nos anos 70 um texto esclarecedor sobre “O Realismo e o Medo do Desejo”. Bersani mostra como o realismo teve a função ideológica e formal de organizar o caos social no século dezenove, representando o mundo através de uma lógica baseada em personagens psicologicamente bem-definidos (para o bem e para o mal), dos quais a incoerência do desejo havia sido banida. A incoerência do desejo era incompatível com a verossimilhança da imagem de uma individualidade coesa, necessária para o apaziguamento do leitor e do cidadão em contraposição à complexidade incompreensível e muitas vezes informe da violência do capitalismo em ascensão. Era preciso acreditar no indivíduo. Por analogia, esse personagem que hoje o leitor acredita ser de carne e osso e que a crítica louva como condição de possibilidade da boa literatura é também a mais artificiosa (e a menos realista) das construções.

Bersani mostra como foi preciso esperar até Proust para que o caos do desejo fosse incorporado ao realismo por meio de um narrador impalpável e ambíguo que, talvez mais realista do que qualquer outro antes dele, é ao mesmo tempo todos e ninguém. O germe desse personagem já estava plantado em Ivánov, essa comédia que não faz ninguém rir.

, , ,