Retrocesso

Colunistas

25.05.16

Não sou leitor de Edmund White. Não li seu romance mais recente, Our Young Man (Bloomsbury), que acaba de sair em inglês, mas fiquei de cabelo em pé ao ler a resenha que a escritora Diane Johnson publicou sobre o livro na edição de maio da The New York Review of Books. É uma crítica em geral positiva e simpática, mas que diz o seguinte: “Um leitor que não seja gay, ao ler romances sobre comportamentos homossexuais, não pode deixar de levar em consideração que os gays estiveram condenados por muito tempo a ler a maior parte da literatura com uma apreciação cooperativa embora intelectual (por oposição a uma apreciação instintiva) das cenas de sexo. Coisas que não correspondem à sua categoria não se traduzem com o mesmo entendimento visceral, são apenas informação: Ah, então é assim que eles fazem?”.

Desde seu primeiro romance, o alegórico Forgetting Elena (1973), incensado por Vladimir Nabokov, Edmund White foi tornando a homossexualidade cada vez mais central e explícita em sua obra. Nascido em 1940, sobrevivente e testemunha da crise da aids e de suas consequências dentro da comunidade homossexual, White terminou por assumir sem constrangimento a militância e o papel de escritor gay. Além de livros de ficção, escreveu textos autobiográficos, uma biografia de Jean Genet e o manual The Joy of Gay Sex, este em coautoria. Viveu anos na França e é profundo conhecedor da literatura e da cultura francesa. O protagonista de Our Young Man é um modelo francês, em Nova York, durante os piores anos da AIDS.

A consideração paternalista expressa na resenha de Diane Johnson (sobre o que os leitores gays devem ter passado até poderem afinal ler uma literatura com a qual se identificassem visceralmente no que se refere às cenas de sexo) parece em princípio resultado de uma percepção solidária do outro, mas é fruto do pior preconceito. Menos contra os gays do que contra a literatura.

É uma reação que se serve do germe plantado pelo multiculturalismo (a ideia de que a cultura é expressão de identidades raciais, de gênero etc.) e que se aproveita das fragilidades e dos equívocos potenciais dessa ideia para defender o inverso: uma literatura entre e para iguais.

Segundo a resenhista, o leitor só pode apreender visceralmente o que o espelha. Do contrário, o que lhe resta é uma leitura incompleta, “intelectual”. Há aí dois preconceitos óbvios e complementares: 1) que não pode haver relação visceral com o que é diferente; e 2) que literatura não é pensamento.

É o mesmo lugar-comum (de que cultura não é pensamento nem diferença, mas identificação) que sustenta o argumento de quem, transferindo as leis de mercado para o âmbito das ideias, acha que financiar obras que estão para além do seu entendimento é jogar dinheiro fora.

O multiculturalismo criou uma armadilha para si ao defender uma estratégia em princípio libertária, rompendo o valor subjetivo do cânone ocidental para abrir a literatura à expressão das minorias e à afirmação das diferenças. No momento em que abandona o valor arbitrário e subjetivo para buscar um critério mais democrático e objetivo, baseado na expressão da experiência e da identidade do autor, a literatura abre o flanco para o tipo de redução e inversão que a resenhista reproduz ao analisar o livro de White: romance de gay é para gays. É um retrocesso.

Ela não chega a dizer que as cenas de sexo homossexual lhe causam repulsa (porque aí entraria em contradição, seria confessar uma forma de leitura visceral com a diferença). Diz apenas que as cenas de sexo homossexual a deixam indiferente ou, melhor, como cabe dizer num ambiente politicamente correto, provocam nela “uma apreciação cooperativa mas intelectual” sobre o que leu. O preconceito é amenizado pela solidariedade e pela empatia com leitores gays que durante tanto tempo tiveram de se contentar com uma indiferença análoga (antes de poderem ler e se identificar com as cenas de sexo abertamente gays).

A perversão do raciocínio é sutil. A principal vítima, como já foi dito, não são os gays; é a literatura, reduzida à identificação não intelectual. A “naturalidade” e a “visceralidade” sempre foram valores associados à universalidade de um texto, contra a estranheza, a singularidade, o hermetismo, a experimentação ou a “cerebralidade”. O que agora parece expressar a lógica pós-multiculturalista dessa resenha é uma segmentação de visceralidades por categorias de leitores. Um texto visceral, segundo a resenhista, já não o é universalmente, mas atende a um determinado segmento de mercado. É um contrassenso, mas é também um desdobramento natural do preconceito de quem acredita e argumenta que cultura e pensamento são coisas contraditórias.

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