Rocinha mais que visível

Em cartaz

15.03.17

Dizer que as favelas são excluídas economicamente, socialmente, culturalmente e até geograficamente do mapa da cidade é chover no molhado. Nem por isso, contudo, elas se consideram invisíveis, e muitas vêm se dedicando a movimentos de resgate de orgulho e pertencimento. É o caso da Rocinha, maior favela do Rio e considerada a maior do país, que ganha na sexta-feira, 17 de março, o site Memória Rocinha, fruto de uma parceria entre o Instituto Moreira Salles e o Museu Sankofa Memória e História da Rocinha. Projeto único por sua extensão e integração, o site, desenvolvido pela equipe do Oi Kabum/Cecip, será lançado no Rio de Janeiro das 14h às 16h30 no Centro Municipal de Cidadania Rinaldo de Lamare (Avenida Niemeyer, 776), e ficará sob a responsabilidade dos coordenadores do Sankofa, criado em 2007.

Plataforma multimídia nascida para atar as pontas entre passado, presente e futuro, o site é participativo, aberto a contribuições de moradores ou não moradores da Rocinha, que poderão enviar suas fotos e depoimentos sobre o lugar e, dessa forma, ajudar a construir e manter viva a memória da favela, considerada um bairro do Rio desde 1993. “Queremos que o site aproxime a juventude do museu, porque muita gente acha museu uma coisa de velho”, brinca o historiador Fernando Ermiro, um dos quatro coordenadores do Museu Sankofa e, assim como eles, morador da Rocinha. “Parte-se do princípio de que a memória é coisa do passado, mas o que é novo hoje, o que acontece agora, vai se tornar memória um dia. Quando falamos isso para os jovens, eles começam a pensar de forma diferente”.

O site é resultado de uma minuciosa pesquisa iniciada no acervo do IMS, em 2015, pela equipe do instituto e do Sankofa. Foram identificadas aproximadamente 60 fotografias da Rocinha e arredores, registradas entre as décadas de 1860 e 1950 por nomes como Marc Ferrez, Augusto Malta, Armando Pittigliani e José Medeiros, dentre outros, das quais 23 foram selecionadas pela equipe. Dessas, seis fotos panorâmicas foram escolhidas para serem refeitas, num trabalho minucioso de georreferenciamento que revela aos visitantes da página, ao deslizarem as imagens de um lado ao outro, a imensa transformação da paisagem.

Além das fotografias, o site já entra no ar com depoimentos de alguns moradores da Rocinha. Divertidos, nostálgicos, críticos, eles vão contando histórias particulares vividas na comunidade, lembrando com carinho do passado, sem perder o olhar atento sobre a situação atual. Uma linha do tempo, elaborada também em grande parte pelo Sankofa junto aos moradores, traz a história da Rocinha desde seu surgimento nos primeiros anos do século XX, com o loteamento irregular da fazenda Quebra-Cangalha, até o desaparecimento de Amarildo Dias de Souza em 2013, após ser detido por policiais da UPP da Rocinha. Um caso que se tornou, como lembra o texto, um símbolo de abuso de autoridade e violência policial.

Assim que as equipes do IMS e do Museu Sankofa perceberam que todo o material renderia uma plataforma multimídia, foi natural reconhecer que as memórias afetivas dos moradores seriam o fio condutor. Durante as conversas com os pesquisadores, eles foram descrevendo pontos de referência – de ruas a construções – para constar no mapa colaborativo, que já traz informações (e muitas vezes imagens) de diversos lugares.

“Para o IMS é uma ação social extremamente importante, pela construção de uma memória e por não ser uma parceria tutelar. Tudo foi construído com o museu, ouvindo os moradores. O IMS propiciou as ferramentas, financiou, fez a digitalização das imagens”, conta Denise Grinspum, coordenadora de Educação do instituto, área que desenvolve outros projetos na Rocinha. “O site está sendo entregue ao Museu Sankofa e será tocado pela comunidade, nosso protagonismo diminui daqui para a frente”.

Michel Silva, que cursa o sexto período de Comunicação Social na PUC-Rio e já integra a equipe de um jornal na Rocinha, o Fala Roça, é o mais jovem componente do Museu Sankofa e será o responsável por alimentar o site. “Tivemos uma preocupação grande de não restringir o conteúdo apenas aos moradores da Rocinha. Queríamos que fosse para qualquer usuário interessado na história do lugar”, diz o jovem de 23 anos, que foi estagiário do IMS e trabalhou diretamente na pesquisa que resultou no site. “A ideia de mostrar as fotos antigas é para que sirvam como um disparador de memórias. Se alguém de 30 anos olhar uma foto da Rocinha feita pelo Augusto Malta há mais de um século, vai identificar o lugar, vai ativar alguma memória”.

Ele diz ainda que as fotografias são importantes na medida em que relembram que a Rocinha faz parte da cidade, “não é só uma favela, está integrada com toda a região ao redor”. Como Michel, Fernando Ermiro acredita que, além de preservar a memória da Rocinha, o site, como o próprio Sankofa – que ainda não tem sede própria, é chamado de “museu de percurso”, recolhendo depoimentos e fazendo ações em toda a comunidade –, ajudará bastante a reforçar o sentimento de orgulho de quem vive ali. “Arte, cultura e memória estão ligadas à cidadania, são uma expressão do que você é e do momento que você está vivendo, até na forma como você construiu sua casa”, afirma, destacando a importância de se registrar os relatos dos moradores. “Pode parecer meio clichê, mas é um instrumento fundamental para despertar o orgulho do trabalhador por tudo aquilo que ele fez. São pessoas que não têm tempo de contar histórias e por isso não vão passar esse sentimento para os filhos, e os filhos não terão orgulho do lugar em que moram e dos pais que tiveram. Então uma das nossas preocupações é promover esse encontro, essa conexão entre gerações diferentes, fazer o neto perguntar sobre a história do avô”.

Num dos depoimentos em vídeo que ilustram bem essa questão do pertencimento, a enfermeira Maria Helena Carneiro de Carvalho, diretora do Centro Médico de Saúde Albert Sabin e também coordenadora do Museu Sankofa, conta o que o pai, português que foi morar na Rocinha e nunca mais quis sair de lá, disse aos filhos quando chegou a época de eles irem para a universidade. “Ele falou ‘vocês querem ir, vão, mas têm que retornar para o lugar de onde eu tirei o pão de vocês’. E isso aconteceu”.

Para manter o site em pleno movimento, Michel tem planos de criar também um blog, no qual contará muitas histórias ocorridas durante o trabalho de pesquisa de campo, como a descoberta, totalmente por acaso, da antiga estrada de Quebra-Cangalha, que teria sido usada pela família real. Ou seja, de um projeto inicialmente baseado em fotografias, o Memória Rocinha foi se transformando num espaço que integra cartografia, vídeos, textos, com possibilidade de agregar novas e múltiplas ações. “Nunca vimos algo como o Memória Rocinha, acho que em seu campo ele é mesmo único”, diz Michel.

Ana Luiza de Abreu, da área de pesquisa e ação social do IMS, que participou do projeto desde o início, também acredita na singularidade da iniciativa. “Fomos para o trabalho de campo com a expectativa de que a fotografia seria a grande estrela de tudo, a celebridade. E quando integramos as fotos com os relatos dos moradores os relatos se sobressaíram, foi muito bonito”, lembra. “Também foi muito bom trazer à tona informações tão importantes. E é um site que está em aberto porque a Rocinha continua em transformação, assim como a cidade. Tem muita coisa para fazer, para crescer. Nós trabalhamos na gênese, mas existe uma outra geração que poderá contribuir também”.

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