Roma, conversa aberta

Cinema

23.05.13
O último dos injustos (Claude Lanzman)

O último dos injustos (Claude Lanzman)

(Cannes) Na cena final de O último dos injustos, de Claude Lanzmann, possivelmente a última das várias conversas filmadas ao longo de uma semana com Benjamin Murmelstein, realizador e personagem caminham numa rua de Roma. Seguem a câmera, que vai alguns passos adiante. É a única entrevista filmada num travelling nas anteriores os dois estão sentados na sala ou no terraço da casa de Murmelstein e a câmera, sentada ao lado deles, limita-se a pequenas correções para desviar o quadro de Lanzmann para seu entrevistado ou vice-versa.

A certa altura dessa conversa, com um toque discreto no braço do Murmelstein, Lanzmann indica que eles devem dar meia-volta e se afastar da câmera. Murmelstein preparava-se para um novo passo adiante quando Lanzmann (discretamente, convém sublinhar) impõe uma nova direção e interrompe o travelling para, com a câmera imóvel, compor a clássica imagem de fim de filme: os dois caminham para o fundo do quadro. Termina assim, com um plano muitas vezes repetido para concluir a narrativa de um filme de ficção, um documentário em que na maior parte do tempo o personagem dirigiu o diretor, ou mais exatamente, o diretor se deixou dirigir pelo personagem.

Terceiro presidente do conselho judaico (o Judenrat) do gueto de Theresienstadt, Benjamin Murmelstein tinha 70 anos quando foi entrevistado por Lanzmann em Roma, em 1975. Trinta anos antes, em 1945, no final da guerra, ele fora preso na Tchecoslováquia sob acusação de colaboração com os nazistas, julgado e inocentado. Catorze anos depois, em 1961, publicara um livro sobre Theresienstadt Terezin, il ghetto modello di Eichmann. No ano seguinte, em 1962, Adolf Eichmann, idealizador do gueto, fora julgado e condenado à morte na forca por um tribunal israelense.

A entrevista com Murmelstein, embora tenha sido uma das primeiras filmadas durante a preparação de Shoah, não foi incluída no filme, nem mesmo parcialmente. “Foi difícil estabelecer contato”, diz Lanzmann, “mas depois de nos conhecermos, filmei uma semana inteira com ele, e essas longas horas de entrevistas, cheias de revelações desconhecidas, me perseguiram até hoje. Sabia que tinham em mãos uma coisa única, mas não sabia como construir um filme com ela”.

A decisão de não incluir qualquer trecho da conversa em Shoah se deve ao fato de “o caso de Theresienstadt ser, ao mesmo tempo. lateral e central na gênese e no desenvolvimento da ?solução final'”, como adverte um letreiro no início de O último dos injustos. Gueto, campo de trabalho, ponto de transferência para campos de extermínio, um “gueto modelo” concebido por Eichmann como imagem de propaganda, Theresienstadt reuniu principalmente judeus austríacos, alemães e tchecos, entre novembro de 1941, quando os primeiros prisioneiros construíram as barracas onde os judeus iriam viver, e maio de 1945, com o final da guerra.

O letreiro inicial lembra ainda que Murmelstein é o único presidente de um conselho judeu que sobreviveu à guerra, “o que torna seu testemunho ainda mais precioso”. Seus dois antecessores em Theresienstadt foram mortos, o primeiro nas câmaras de gás do campo de Auschwitz e o segundo no gueto, com um tiro na nuca.

O mesmo aconteceu com os presidentes dos conselhos judeus de Lwow, Varsovia, Vilna e Lodz. Em O último dos injustos, Murmelstein conta que sobreviveu por ter representado um papel como o de Scheherazade em As mil e uma noites, “a toda hora, inventava um novo conto para os comandantes”, e porque soube agir como o Sancho Pança do Dom Quixote. Os nazistas, diz ainda, quiseram fazer dele um marionete, um fantoche que se move conduzido por cordões, mas o fantoche aprendeu ele mesmo a manipulá-los.

O último dos injustos (Claude Lanzman)

O último dos injustos (Claude Lanzman)

Em Roma, sem jamais ter ido a Israel, mas sem guardar ressentimentos contra as acusações de colaboracionista, ele se autodefinia como o último dos injustos, por referência ao livro de André Schwarz-Bart O último dos justos (romance publicado na França em 1959, inspirado na lenda judaica dos homens que trazem em seus corações todos os sofrimentos da humanidade e impedem o mundo de se autodestruir os 36 justos). Depois dos 18 meses de prisão na Tchecoslováquia, e uma vez inocentado das acusações de colaboração com os nazistas, Murmelstein mudou-se para Roma, onde vivia, insiste, sem ressentimentos: seguia a lição da história de Orfeu e Eurídice, não olhar para trás para conseguir sair do inferno e voltar a viver.

No começo, antes das entrevistas, Lanzmann lê trechos de Terezin, il ghetto modello di Eichmann nas estações de Bohusovice e de Nisko, onde chegavam os trens com os judeus enviados para Theresienstadt, e nos locais em que os judeus foram confinados no gueto. Apresenta os desenhos feitos clandestinamente para registrar o dia a dia em Theresienstadt, mostra fotografias e reproduz quase na íntegra o filme de propaganda (feito em 1944 por Kurt Gerron) Theresienstadt. Ein Dokumentarfilm aus dem jüdischen Siedlungsgebiet (Um filme documentário sobre o reassentamento dos judeus), também conhecido como Der Führer schenkt den Juden eine Stadt (O Führer dá uma cidade aos judeus).

 

No final, depois das entrevistas na casa de Murmelstein, a caminhada ao ar livre em Roma, possivelmente a última conversa. E ali Lanzmann lembra a dura condenação feita por Gershom Scholem: para ele. Murmelstein deveria ter sido enforcado por ter colaborado com os nazistas.

Nesse passeio na rua a atmosfera é descontraída, talvez ainda um pouco mais que nas anteriores, na casa de Murmelstein. O entrevistado fala à vontade, com segurança e clareza, lembra os encontros com Eichmann e com os comandantes que o sucederam no gueto, das discussões para conseguir vistos para a Colômbia, das reuniões com os outros integrantes do conselho de judeus. Lembra de ter sentido medo de uma transferência para Birkenau e de não ter avaliado corretamente o medo de crianças vindas de um outro campo ao serem levadas para tomar banho.

O entrevistador limita-se a propor os temas da conversa e, a partir daí, intervir ligeiramente para levar o entrevistado a repetir, reconfirmar, esclarecer uma terceira ou quarta vez, um detalhe de maior significação.  Pequenas perguntas no meio do depoimento levam Murmelstein a explicar como conseguiu burlar uma ordem menos precisa dos nazistas e autorizar o nascimento de crianças no gueto,  como montou uma estratégia para conseguir vacinas contra o tifo e o porquê de ter aceitado  o projeto de “embelezamento” do gueto para uma visita de representantes da Cruz Vermelha dinamarquesa em junho de 1944 o envio de madeira e vidros para reparar as casas indicava o interesse dos nazistas na manutenção do gueto para propaganda, e parecia uma garantia de que seus moradores continuariam vivos. Explica também por que se preocupou com a ordem de destruir as urnas com as cinzas do mortos no gueto apagar as referências do número de pessoas que viveram e morreram no local parecia um indício de que iriam acabar com Theresienstadt.

Lanzmann intervém com breves perguntas no depoimento em que Murmelstein conta por que conseguia sentar-se diante dos comandantes nazistas do gueto, quando todos os judeus eram obrigados a ficar de pé diante de qualquer soldado alemão. Aconteceu num dos primeiros encontros com Adolf Eichmann. Aparentemente desconfortável na cadeira baixa por trás da mesa que o obrigava a olhar para cima para falar com Murmelstein, Eichmann mandou trazer uma cadeira. Com Murmelstein sentado, num plano inferior, o quadro podia ser invertido: Eichmann passava a olhar de cima para baixo. O suboficial que trouxe a cadeira, mais tarde nomeado comandante do gueto, apenas repetia, disciplinado, automático, o gesto de Eichmann.

O último dos injustos (Claude Lanzman)

O último dos injustos (Claude Lanzman)

Na rua, entrevista quase terminada, durante um passeio ao ar livre, a questão apenas mencionada ligeiramente ao longo da semana as acusações de colaboracionismo com os nazistas é retomada. No meio da resposta Murmelstein começa uma frase com uma exclamação comum, “meu amigo!…”, e alonga a reticência para comentar noutro tom: “espero que não se ofenda por chamá-lo de amigo”, e então prosseguir o que dizia. Comenta a condenação à forca pedida por Scholem, para ele “um sábio, mas um pouco caprichoso em matéria de enforcamento”, porque, lembra, “foi contra o enforcamento de Eichmann e pediu a forca para um judeu”. Lembra uma frase de Isaac Bashevis Singer para resumir a experiência de viver num gueto durante a Segunda Guerra Mundial: “fomos todos mártires, mas nem todos os mártires foram santos”.

Muito provavelmente a última cena a ser filmada, o passeio em Roma resulta de uma relação de confiança que entrevistador e entrevistado construíram ao longo de uma semana de conversa. Talvez até de respeito e admiração. Depois do ligeiro toque de Lanzmann no braço de Murmelstein para indicar a meia-volta, um outro gesto, bem visível, com os dois já distantes da câmera. Lanzmann põe a mão no ombro de Murmelstein uma imagem-síntese do método de trabalho do diretor na extensa documentação realizada em torno de Shoah: em cada entrevista ele procura estabelecer uma cumplicidade afetiva com o entrevistado. O fim de filme numa rua de Roma revela, enfim, o que Lanzmann sublinhou na apresentação de O último dos injustos em Cannes: “Fiz um filme sobre um homem absolutamente excepcional, um sábio, estudioso de mitologia, imensamente inteligente, cheio de humor e de uma sinceridade extrema”.

* José Carlos Avellar é coordenador de cinema do IMS.

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