Romance de desformação

Colunistas

06.08.14

Na concepção clássica, romance de formação é uma narrativa em que o personagem se forma ao mesmo tempo que o mundo se transforma, e cabe a ele refletir sobre si mesmo enquanto também reflete sobre a formação histórica do mundo. O que amar quer dizer, do francês Mathieu Lindon – que participou desta última Flip –, pode ser lido a partir desta definição, tomando a narrativa da sua amizade com o filósofo Michel Foucault como um dos eixos principais da sua formação. Voltada para uma experiência transgressora, de crítica aos valores burgueses, à heterossexualidade compulsória, ao patriarcado, à pretensão da consciência, a formação de Lindon por Foucault, no lendário apartamento da Rue de Vaugirard, acaba por ser a desformação do mundo pós-Maio de 1968, aqui símbolo de ruptura com valores tradicionais, hierarquias e pretensões de universalidade ainda herdados da modernidade.

O autor Mathieu Lindon (Divulgação)

O momento histórico ao qual O que amar quer dizer se refere é o da desconstrução dos valores tradicionais, expresso monumentalmente na frase com a qual, a certa altura, Lindon passa a ser definido no ambiente intelectual francês: “Você é gay, drogado e amigo de Foucault”. Como se fossem três crimes equivalentes, a filosofia inovadora de Foucault – ainda hoje, 30 anos após a sua morte, inspiração de pensadores como Giorgio Agamben e Judith Butler, para citar apenas os mais emblemáticos – participa do livro sem que nenhuma linha sobre seu pensamento tenha sido escrita por Lindon. Trata-se mais da experiência de uma “estética da existência” – para usar a consagrada expressão foucaultiana – e menos de um relato sobre como o pensamento de Foucault pode ter des/formado o protagonista desta autobiografia cujos relatos de uso de LSD, ópio e heroína e de descoberta da homossexualidade aparecem ao leitor sem nenhum acento exagerado. A sobriedade do texto na tradução de Marília Garcia parece querer forçar uma narrativa não-escandalosa, não-engajada, não-pregadora, não-prescritiva.

Se são necessários tantos “nãos” como prefixos, isso se deve ao fato de que o modo como Foucault “educa” Lindon é análogo ao seu pensamento: a negação da norma, negação cujo caráter afirmador de uma outra forma de existência é brutalmente interrompido com a morte precoce do filósofo, uma das primeiras vítimas da epidemia de Aids, então desconhecida em toda sua dramática extensão. Essas negativas se relacionam também com outro personagem central na história e na vida de Lindon: seu pai, Jérôme Lindon, o lendário editor da Minuit, casa editorial criada na resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial e responsável pela publicação de autores como Gilles Deleuze, Marguerite Duras e Samuel Beckett. Por ser muitos anos mais jovem que Foucault – Lindon tinha 22 anos, Foucault, 51 –, e por reconhecer que, na relação de amizade com o filósofo, teve uma experiência de aprendizagem decisiva, muitas vezes Mathieu compara Foucault a uma figura paterna, aqui no sentido daquele que forma, orienta e cuida.

O filósofo Michel Foucault (M. Garanger/Gallimard)

A partir da segunda metade do livro, com a narrativa já tendo chegado à morte de Foucault, Lindon retoma a história da sua relação com o pai, cuja intensidade se mostra ao leitor desde as primeiras linhas, quando Foucault e Jérôme aparecem entrelaçados pela frase “Nunca conheci alguém tão interessante e tão generoso: não pode ser um acaso”. Aqui, retomo a concepção de romance de formação, para argumentar que, enquanto Foucault cumpre a função de “desformação”, o pai de Mathieu aparece como a figura de formação, como representante de um mundo em extinção, cujo momento de mudança está inscrito em “O que amar quer dizer” no enfrentamento dos dois personagens. Enfrentamento que, cabe esclarecer, se dá apenas na narrativa de Lindon, porque de fato, Michel Foucault e Jérôme Lindon já se conheciam na França dos anos 1970 e nunca tiveram nenhum tipo de confronto. O enfrentamento a que me refiro é uma construção na estrutura da narrativa autobiográfica, pontuada por esses dois personagens, representantes da formação e da desformação de Mathieu. Enquanto o pai encarna a tradição, Foucault, a transgressão; enquanto o pai representa aquilo mesmo que a um pai cabe representar – o patriarcado; Foucault, a homossexualidade como modo de vida alternativo ao modelo patriarcal até ali estabelecido.

Capa da edição brasileira do romance de Lindon

Nesse processo de construção/desconstrução, o livro de Lindon ainda remete a um romance de formação porque cabe a ele refletir sobre si mesmo enquanto também reflete sobre a mudança do mundo. Esse talvez seja o aspecto mais interessante de O que amar quer dizer. Por se propor a ser um livro sobre amizade, sobre os laços fraternos como aqueles que respondem ao que amar quer dizer, por ter seu título inspirado em Montaigne, a autobiografia de Lindon reflete sobre a mudança do mundo ali mesmo onde não explicita fazê-lo. “O que Michel apreciava numa relação era sua singularidade, e sua estratégia consistia em manter sua originalidade”, conta Lindon. Aqui, é como se houvesse um ponto cego no texto, em que singularidade e originalidade, sendo os elementos da mudança do mundo, não podem ser expressos por Lindon se não performativamente. É ao escrever uma narrativa singular e original que ele mostra ao leitor a mudança de um mundo que pode se dividir entre antes e depois dos anos 1970, antes e depois da percepção, presente na obra de Foucault, mas não apenas, de que o sujeito humano não é fundamento do mundo, mas apenas contingência.

O que amar quer dizer ganhou o prêmio Médicis de literatura na França em 2011. É o primeiro livro de Lindon lançado no Brasil, cuja carreira de jornalista e romancista inclui a publicação de 17 romances e dois livros de ensaios. Lindon estará em São Paulo nesta quinta-feira, 7, para uma noite de autógrafos na Livraria Cultura. 

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