Sem lenço, sem documento

Em cartaz

25.07.16

“Tudo que podia ser feito daqui foi feito. Tudo que podia ser feito nos Estados Unidos foi feito. E tudo foi inútil, pelo menos até agora”. É assim que um desolado Augusto Boal comunica à mãe, Dona Albertina, em carta de abril de 1973, os esforços feitos para conseguir, em Buenos Aires, a renovação de seu passaporte. O desabafo ainda é acompanhado de um delicado e preocupado PS: num recado escrito à mão, na margem da página datilografada, Boal pede a ela que não tente nenhuma ajuda, que “não se arrisque por isso” naquele momento tão difícil do Brasil. Logo depois o dramaturgo teve o documento concedido, mas dois anos adiante a história seria muito diferente.  Exilado na capital argentina desde 1971 com a mulher, Cecilia, e os filhos Fabian e Julian, em 1975, com o passaporte novamente expirado, Boal tentava em vão conseguir a revalidação do documento, essencial para as viagens internacionais que lhe rendiam visibilidade e alguma estabilidade econômica, garantida por palestras e conferências feitas em diversos países.

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Boal escreveu para vários amigos sobre o assunto que o angustiou e o mobilizou durante um longo ano, e algumas destas cartas, além da que enviou para a mãe, fazem parte da exposição Meus caros amigos – Augusto Boal – Cartas do exílio, em cartaz no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro até dia 21 de agosto. Para o crítico Carlos Porto, por exemplo, Boal escreve dizendo que pensa em processar o governo brasileiro por “agressão econômica” por lhe negar a chance de ganhar dinheiro com seu trabalho. Depois de tantos meses solicitando sem sucesso o documento, o dramaturgo efetivamente impetra, em fevereiro de 1976, um mandado de segurança contra o Ministério das Relações Exteriores, e em maio consegue a vitória por 10 a 2, que chamou de “verdadeira goleada” ao escrever para Porto.

O termo também é repetido num bilhete “rápido, eufórico, feliz, ululante” escrito para Chico Buarque, no qual ele agradece o apoio e a mobilização no Brasil feita pelo cantor e compositor – junto com outros artistas – para que o documento fosse concedido.

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Embora tenha saído vitorioso do processo, o período no qual o criador do Teatro do Oprimido batalhou pela renovação do passaporte foi muito angustiante para todos, como lembrou a viúva Cecilia Boal no projeto Conversas na Galeria, coordenado pelo departamento de educação do IMS, ocorrido dia 20 de julho. Mesmo com medo de atravessar fronteiras sem o documento em dia, a psicanalista, que também dirige o Instituto Augusto Boal, parceiro do IMS na organização da exposição, lembra que eles aceitavam convites para eventos no exterior e improvisavam.

Numa dessas vezes, ainda em 1975, eles foram salvos pelas fraldas do filho Julian, então um bebê de quatro meses. Convidados para um encontro de escritores latino-americanos no Equador, Boal e a família foram para o aeroporto de Buenos Aires com a promessa de que haveria alguém da embaixada equatoriana recepcionando-os. Ninguém apareceu, e um funcionário do aeroporto se recusava terminantemente a deixá-los embarcar. Nessa altura, as malas já haviam sido despachadas, e numa delas estavam praticamente todas as fraldas de pano, únicas disponíveis naquele tempo, que seriam usadas pelo bebê. Cecilia insistia, insistia e insistia no embarque. “Depois de tantas negativas, eu já cansada, desesperada, falei firme com o sujeito, mas sem gritar: ‘Então me devolva a mala. Sem ela, sem as fraldas, não volto para casa. Não vou sair daqui enquanto ela não for devolvida’”. E o homem, irritado, gritou apenas um “Então vão!”, conta ela, deixando a família finalmente embarcar. A partir daí, lembra Cecilia, ela percebeu que, com Julian junto, prestava-se menos atenção ao passaporte e mais nas gracinhas do bebê. E assim eles conseguiram fazer algumas outras viagens.

A exposição Meus caros amigos – Augusto Boal – Cartas do exílio abrigará mais uma edição do  Conversas na Galeria dia 10 de agosto, quando a pesquisadora e atriz Clara de Andrade falará sobre o dramaturgo, tema de seu livro O exílio de Augusto Boal: Reflexões sobre um teatro sem fronteiras, lançado em 2014.

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