Sem muito a dizer

Música

01.06.12

Desde que me mudei para São Paulo, tenho assistido, mais ou menos uma vez por quinzena, a algum espetáculo musical que nunca imaginei que veria ao vivo. Apesar de todos os problemas que alguém pode apontar na metrópole brasileira, não tem como dizer que faltam programas culturais, especialmente para os interessados por música contemporânea. Foi assim que vi shows de John Zorn, Mogwai, The Mission, e, na última quarta-feira, Eluvium. Escuto Eluvium desde que ele (sim, ele, pois é a banda de um homem só, Matthew Cooper) lançou o aclamado Copia em 2007. Para quem nunca ouviu falar de Eluvium, aqui vai, digamos, um “resumo selecionado” de sua trajetória.

Eluvium começou a carreira com Lambent material, de 2003, um disco de ambient que acho um tanto genérico: pianinho, ruídos de fundo, alguma narração de baixa qualidade sobreposta, pouca preocupação em criar uma linha melódica forte.

http://www.youtube.com/watch?v=1bjAZhKZ-_g

No ano seguinte, lançou o disco que mais gosto: An accidental memory in case of death. Neste álbum, deixou as texturas de lado e se concentrou no piano e em melodias às vezes repetitivas, às vezes dissonantes, mas nada agressivo. Trata-se de um disco acessível, que podemos colocar para tomar café-da-manhã em um dia de poucas nuvens. Nesse sentido, lembra muito outro pianista contemporâneo, Dustin O’Halloran. Posso fingir que entendo algo de música e especular se Eluvium não tenta fazer uma ponte entre Arvo Pärt (pela beleza) e György Ligeti (pela ocasional tensão). Por outro lado, tenho a impressão de que a grande maioria de músicos atuais que circulam pelo ambient e pelo piano solo, como Max Richter e o já citado Dustin O’Halloran, tentam fazer apropriações pop de Pärt e Ligeti – com a diferença óbvia de que Pärt e Ligeti usam muito menos notas em suas composições. E há muito, claro, de Erik Satie – em Eluvium e na maioria de músicos dessa linha. Abaixo, uma música de An accidental memory in case of death:

http://www.youtube.com/watch?v=7oF9gmMADag

Em 2007, Eluvium lança Copia, provavelmente seu disco mais conhecido. Neste, há espaço tanto para o lado ambient de Lambent material (em faixas como “Indoor swimming at the space station“) como para o lado focado no piano (escutar “Radio Ballet“).

Três anos depois, uma revolução. O compositor reaparece com Similes, um disco com… pasme: vocais. E guitarra. Para mim não funcionou muito bem, e nunca dei atenção ao disco. Até quarta-feira, no show.

***

Eluvium tocaria em São Paulo como parte do festival NOVA, junto com os espanhóis do Bosques de Mi Mente. Saí do trabalho e fui direto ao SESC Pompeia, ou seja, cheguei bastante cedo. Sentado em uma das mesinhas do restaurante a céu aberto, comendo um hambúrguer, vi uma pessoa que representa o típico estereótipo de gringo entrando ao lado de dois sujeitos que carregavam engradados de cerveja. Uma mulher parou o gringo e pediu um autógrafo. Então, quer dizer que aquele americano mirrado de camiseta sem estampa, com a pele vermelhíssima de ter tomado sol demais, era Matthew Cooper, vulgo Eluvium?

Terminei de comer o hambúrguer e fiquei caminhando pelo SESC. Logo me deparei outra vez com o músico. Estava do lado de fora do teatro, fumando um cigarro e bebendo uma lata de Bohemia.

O dilema me atingiu: devo falar com ele? Se sim, o que diria? Tietaria, pediria autógrafo, uma foto, de repente? Ou conversaria com ele sobre os seus discos? Não, ele provavelmente está de saco cheio disso. Deveria expressar minha gratidão por ele ter composto aqueles álbuns que tanto escutei? Alguns artistas ficam muito contentes de ouvir essa resposta do público, outros só se encolhem e morrem de vergonha. Resultado: na indecisão, acabei não falando com ele. Melhor deixar o cara fumar o seu cigarro em paz.

O show começou com a performance de Bosques de Mi Mente, que eu nunca tinha escutado. Algumas canções boas, outras que me soaram insossas. As projeções, feitas com pontos e riscos que se moviam a cada nota tocada, eram o complemento ideal para o show. Bosques tocou por mais ou menos uma hora. Quando terminaram, quase metade do público que enchia o teatro se levantou e saiu. Escutei uma garota comentar que parecia trilha de filme (o comentário mais recorrente feito a bandas que trabalham com ambient ou piano solo) e que era meio entediante.

Durante o intervalo, Eluvium subiu no palco e ficou ajeitando os instrumentos. Ninguém o abordou. As pessoas que tinham saído voltaram, os alto-falantes anunciaram que iria começar, e, após alguns aplausos, ele apertou um botão no sintetizador e deu início. Eu não estava olhando o relógio, então o que direi a seguir é muito impreciso: tenho a impressão de que Eluvium tocou por trinta minutos. Isso mesmo, meia hora. Quantas músicas? Uma. Quer dizer, foram mais: dava para reconhecer trechos de diversas músicas, mas elas estavam todas fundidas em uma. Foi uma performance sem pausas, ou seja, completamente encadeada. Teve piano, texturas no sintetizador, samples, algum ruído branco, guitarra tocada com arco de violoncelo… Tudo realizado pelo sujeito de camiseta e casaco de moletom que antes fumava um cigarro e bebia uma Bohemia. É um tanto como a cena em Star Wars: Ataque dos clones, na qual o tímido Yoda joga sua bengala no chão e se revela um mestre no sabre de luz.

Talvez eu esteja vivendo um período esquisito de minha vida, mas o show me emocionou de um modo que não imaginava. Quando me dei conta, lágrimas escorriam sem parar do meu rosto. Até o vocal, que me incomodava no disco, apareceu com uma voz tão frágil e assustada, que soou, na falta de outras palavras, ideal. As projeções visuais também eram renderizadas a partir do som, e, ao contrário das imagens monocromáticas que acompanharam Bosques de Mi Mente, a música de Eluvium ganhou triângulos que refletiam um sol invisível e ofuscavam a plateia, e depois fios prateados que se enrolavam e desenrolavam.

Ao final da performance, senti uma calma profunda, uma calma que me lembrou as técnicas de relaxamento do yoga (sim, fiz yoga por quase um ano, por mais que ninguém acredite quando conto). Foi tão breve o show que pensei que ele voltaria para mais. Um bis que fosse. Mas o público (que já era reduzido) foi saindo, as luzes se acenderam…

Ao final, olhei ao redor esperando ver alguém com uma câmera. Qualquer show musical que vou tem setenta e duas câmeras, e costumo me irritar com pessoas na minha frente que insistem em ver um espetáculo sempre através do visor de um celular ou de uma câmera. Mas não. Ninguém. E achei uma pena. Foi algo que eu gostaria de ter compartilhado. Era o tipo de coisa que eu gostaria de ter enviado para todos os meus amigos.

Tinha certeza de que Matthew Cooper ia aparecer por ali logo em seguida. Estaria acessível. Eu teria chance de falar com ele. Poderia, quem sabe, até combinar uma entrevista para o Blog do IMS. Mas eu não tinha nada a perguntar, nada a dizer. Havia a gratidão, sim, mas me questiono se é preciso demonstrar tal gratidão. Além do mais – sei que isto já foi repetido tantas vezes que chega a ser óbvio – o autor não importa. Matthew pareceu humilde e simpático. Se fosse arrogante e enjoado, sua música seria diferente? Há tantas pessoas desagradáveis produzindo grande arte por aí, e tanta gente bacana criando obras inócuas. Uma conversa pós-show não significaria nada. Seria o legítimo falar sem falar. Ele já me havia dito muita coisa naquela noite através de sua única música. Eu tinha respondido com o meu silêncio e meus aplausos ao final. Cheguei em casa com a certeza de que isso era o suficiente.

* Na imagem que ilustra a home desse post: o músico Matthew Cooper

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