Sempre teremos Paris

Colunistas

01.07.15

Em Paris, capital da modernidade, do geógrafo inglês David Harvey, o leitor brasileiro vai encontrar a versão europeia do que foi a transformação do Rio de Janeiro no início do século XX, quando as avenidas foram alargadas, os pobres, afastados, e os espaços urbanos organizados em prol da ordem capitalista. O prefeito Pereira Passos, uma espécie de George Haussman tupiniquim, seguiu um projeto que vinha da Europa, expandia e fazia circular o capital para os trópicos.

A rue de Rivoli, com seu alinhamento muito reto, era visto como sintoma do que Haussmann representava

O que há de revelador na obra de Harvey, lançamento de fôlego da Boitempo Editorial – são quase 500 páginas e 200 ilustrações históricas – é o fato de que só se possa entender a história do Rio de Janeiro a partir da análise do que aconteceu na França. Na versão oficial da história fluminense, as mudanças promovidas por Pereira Passos foram a bem-vinda chegada da modernização de um país pobre e colonizado que, enfim, alcançaria a graça de se tornar imagem e semelhança da cidade europeia.

As reformas urbanas de Paris no final do século XIX entraram para a história da arquitetura, da política, do capitalismo e da filosofia com a obra do filósofo alemão Walter Benjamin, autor de Paris, capital do século XIX – o livro das passagens, o mítico e inacabado e só postumamente reconhecido trabalho. Se em Benjamin há filosofia e poesia, em Harvey há um impressionante levantamento histórico de dados que mostram como tudo mudou em Paris entre os anos 1830 e 1848, ano decisivo no qual a burguesia preferiu o despotismo da monarquia à república democrática das classes populares.

Bem ao modo de Benjamin, Harvey também percebe a modernização como um mito de ruptura radical com o passado, fazendo com o que o novo supostamente possa ser inscrito numa superfície inteiramente limpa de referências do passado. Principalmente sob influência de Marx, Harvey entende a modernização a partir da ideia de que nenhum ordem social pode conseguir mudanças que já não estejam latentes na condição social existente. Essa hipótese desmonta toda pretensão de ruptura radical e implica passado, presente e futuro nas mudanças em curso.

Talvez seja por isso que a análise do geógrafo inglês David Harvey sobre as transformações na capital francesa sejam ainda tão atuais e sirvam para pensar não apenas o Rio de Janeiro do início do século XX, mas também do início do século XXI, com suas obras olímpicas espalhadas por todos os lados, fluxo de capital e inovação tecnológica na área da construção civil impondo padrões urbanos estéticos de gosto duvidoso e prioridades urbanas ainda mais suspeitas.

“A vida econômica e social foi alterada; os operários se tornaram menos independentes e menos especializados, foram isolados na periferia da capital, longe do trabalho. Pela vontade do prefeito e da burguesia, a antiga comunidade urbana foi fragmentada entre os bairros proletários e os burgueses”. Embora seja Harvey se referindo a Paris, também poderia ser a descrição não apenas do Rio de Janeiro de 1900 como também do Rio de Janeiro de hoje, com suas pontes suspensas, suas contradições inequívocas – o viaduto da Perimetral derrubado porque é feio, a horrível duplicação do viaduto do Joá derrubando parte da floresta – as extensões de metrô testando soluções de superfície, as populações mais pobres afastadas de seus bairros, a burguesia sentindo na pele a gentrificação que vem de fora, e o investimento internacional comprando os imóveis nos bairros tidos como nobres na cidade.

Cenário coerente com a percepção de Harvey sobre as transformações urbanas contemporâneas, tema de outro de seus livros, O enigma do capital: e as crises do capitalismo. Escrito como uma resposta ao que o marxismo teria a dizer sobre a crise imobiliária e financeira que varreu os EUA e abalou os mercados globais em 2008, ali Harvey já falava daquilo que o morador da futura cidade olímpica vive hoje. Ao perceber que o capital só sobrevive em movimento, seja entre diferentes mercados, seja geograficamente, Harvey dava a pista para entender os projetos dos megaeventos – Copa 2014, Olimpíadas 2016 – como rota de passagem do capital estrangeiro pelo Brasil, em geral, e pelo Rio de Janeiro, em particular. 

Sempre teremos Paris para nos ajudar a entender que a passagem do antigo para o novo não se dá sem traumas, sem que o morador da cidade se sinta um estrangeiro, como relatava Benjamin e como se queixam os cariocas, sem saber mais que caminhos tomar para chegar a bairros tradicionais como o Centro. Unir geografia e marxismo faz de Harvey um autor peculiar, com uma pegada marxista que, mesmo sendo teórica – seus cursos sobre O capital são verdadeiros campeões de audiência na web – é de fácil aproximação e identificação a qualquer leitor que seja um observador crítico do ambiente urbano em que vive. Há décadas defendo que viver como um carioca exige esta observação crítica, por que o Rio de Janeiro não é, definitivamente, uma cidade para amadores. 

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