Serra: desenho-espaço

Artes

23.07.14

“É função da arte, em particular, tornar acessíveis modos não vistos de se ver.” [1]

Richard Serra

 

A obra durou cerca de um mês e manteve pisos e paredes envoltos numa nuvem branca que mal permitia a respiração. Mas, quando o pó enfim se dissipou, o que emergiu foi um espaço vazado, surpreendentemente novo. Se outros pensaram em fazê-lo, ninguém até então tinha sido capaz de intervir assim sobre essa casa histórica, desde que ela foi convertida na sede carioca do Instituto Moreira Salles. 

A exposição Richard Serra: desenhos na casa da Gávea é bem mais, portanto, que uma mostra de desenhos de um dos maiores artistas contemporâneos. Os trabalhos foram posicionados pelo próprio artista em paredes e vitrines. Mas a ação de Serra, mais uma vez, foi muito além da disposição das obras e envolveu uma redefinição profunda do espaço arquitetônico em que elas se situam – embora a operação tenha se resumido, efetivamente, à remoção dos painéis de vedação que recobriam os panos de vidro e as colunas soltas que caracterizam a sintaxe modernista da casa projetada por Olavo Redig de Campos no final da década de 1940. 

O ponto de partida foi a análise da casa, que Serra visitou duas vezes antes da montagem da exposição. Revelando grande intimidade com princípios que definem a espacialidade moderna em arquitetura, fez um minucioso trabalho de leitura e deciframento de sua lógica estrutural. Logo percebeu que as alterações impostas à casa em função dos requisitos expositivos haviam confinado o espaço a ponto de privar a casa de sua dimensão arquitetônica constitutiva. O que, no caso, deve ser entendido não do ponto de vista formal, mas da sua fisicalidade: matéria, luz, estrutura, densidade, espaço.

 

Longe de se definir como uma restauração, a intervenção de Serra consistiu então em envolver tanto o projeto original (anos 1940) quanto o projeto de adaptação da casa a espaço expositivo (anos 1990), transformando profundamente ambos. Desse ponto de vista, Serra não deixa de mostrar a mesma relação crítica com a arquitetura estabelecida em seus trabalhos iniciais, como as operações de escoramento da série Props (1968-9), que abriram caminho para todo um conjunto de esculturas que lidam com a força da gravidade e se situam na iminência do colapso. Talvez não haja mais a carga violenta do chumbo arremessado contra o encontro entre parede e chão (Casting, 1969), que fez da arquitetura molde para a escultura. Tampouco conta-se com o índice de atrito de uma escultura como Tilted arc (1981-89), erguida numa praça em Lower Manhattan e destruída após intensa batalha judicial. De todo modo, a obra de Serra não deixa de permanecer desafiadoramente imbricada com a arquitetura. 

Se o contato com artistas e músicos como Josef Albers, Jasper Johns, Donald Judd, Dan Flavin, Philip Glass e John Cage tem sido largamente reconhecido como decisivo na sua obra, a referência a arquitetos, cada vez mais explícita [2], parece, no entanto, bem menos explorada. Muito embora seja impossível considerar as esculturas site-specific de Serra sem lidar com questões que se cruzam o tempo todo com o contextualismo em arquitetura. Não do ponto de vista historicista de Aldo Rossi ou semiológico de Robert Venturi, mas a partir de questões que também emergem da ênfase dada à especificidade do contexto e à construção do lugar. 

Projetos concebidos em parceria com arquitetos também não faltam à trajetória de Serra, como uma ponte imaginária entre dois arranha-céus de Nova York (com Frank Gehry, em 1981) e o projeto vencedor do concurso do memorial do Holocausto em Berlim (com Peter Eisenman, em 1983) [3]. Com Eisenman, a relação mais tensa traduz de certo modo o diálogo produtivo, ainda que por vezes conflituoso, de Serra com a arquitetura. Não por acaso, “House of Cards”, por exemplo, designa tanto a série seminal de casas de Eisenman [4] (1968-78) quanto um dos Props mais conhecidos de Serra (One ton Prop, 1969). Já a “Lista de verbos” elaborada pelo artista (Verb list, 1967) revela uma relação imediata com os diagramas usados pelo arquiteto para explicitar o processo operativo que informa sua concepção projetual [5]

Numa entrevista a Eisenman, Serra se mostra um dos grandes críticos de arquitetura da atualidade: “Quando a escultura entra no domínio da não-instituição, quando ela deixa a galeria ou o museu para ocupar o mesmo espaço e lugar que a arquitetura, quando ela redefine espaço e lugar em termos de necessidades escultóricas, os arquitetos ficam aborrecidos. Seu conceito de espaço não está sendo apenas transformado, mas na maior parte dos casos criticado.” [6] Noutra entrevista, Serra diz: “Experimento uma espécie de prazer diante de volumes criados por alguns arquitetos. E, no entanto, raramente sente-se uma qualidade disjuntiva neles. Os arquitetos usam a totalidade do volume; eles raramente fazem o espaço se mover ou se retorcer.” [7] E ainda: “A maioria dos arquitetos hoje em dia não está preocupada com o espaço, mas com a pele, a superfície. Há pouca invenção em termos de estrutura. O edifício básico é projetado por um engenheiro, e os arquitetos acrescentam várias camadas, paredes-cortina, o que for”. 

Do ponto de vista do artista, afinal, o que importa é pensar a arquitetura não como suporte, mas como matéria. E talvez esteja aí uma chave produtiva para o entendimento da sua obra. Não há subordinação da arquitetura à escultura, ou vice-versa; ambas se alimentam de um imbricamento que tensiona limites e coloca em questão a própria relação histórica entre arquitetura e escultura, bem como o enfrentamento de ambas com a força da gravidade. 

Nesta que é sua segunda exposição no Rio de Janeiro [8], Serra opera pela primeira vez num espaço doméstico (ou pelo menos de origem doméstica). Não está no espaço urbano, nem na galeria. Nem no campo indeterminado de Shift (1970-72), nem na paisagem desértica do Qatar (East-West/West-East, 2014). Aqui a matéria é uma casa. Luxuosa, com a monumentalidade meio absurda de um palácio tropical imerso num jardim de Burle Marx, hoje vizinho da Rocinha. A planta da casa – 3 braços em “U” em torno de um pátio – remete claramente à tradição colonial. Já os amplos panos de vidro expressam a fluidez espacial disponibilizada pela técnica moderna, em tensão com a rigidez axial enraizada no projeto da casa. Por sua vez, os elementos arquitetônicos inserem com grande liberdade uma ampla gama de citações: colunas clássicas, venezianas de origem árabe, curvas niemeyerianas. Além das maçanetas douradas, moldadas à mão do proprietário. 

Esse grau de desmedida, comum tanto ao pórtico de entrada e aos combogós da varanda quanto às folhas que caem no jardim, parece encontrar nos desenhos de Serra uma espécie de compensação. Porque aqui também suas obras estabelecem uma medida para o lugar. Negros e espessos, os desenhos absorvem a luz extrema dos trópicos com uma concisão e economia de materiais que se contrapõem ao amplo leque de materiais, cores e filtros usados na casa (combogós, venezianas, brises). Enquanto o peso dos desenhos redimensiona a leveza da casa, expressa nas colunas de novo aparentes, cujo talhe fino e delicado lembra as garças que vêm pousar sobre o telhado de quando em quando. 

Desde que se cruza a soleira da casa, o tempo parece ralentar, por contar com uma experiência que requer o deslocamento do corpo no espaço. Ingressando na sala à esquerda, experimenta-se uma espécie de compressão, provocada pelo posicionamento lateral de dois desenhos negros em grande escala, em paredes opostas. Assim, enquanto o espaço atravessa o vidro e se expande num sentido, as massas negras o comprimem no outro. 

Double Rift #6, de Richard Serra

Quando o corpo gira para sair da sala, o olho atento percebe o alinhamento dos desenhos circulares que se estendem às paredes laterais do espaço de circulação. Essa continuidade é acentuada quando se chega à sala maior, onde os grandes planos rugosos com fendas (Rift #1, 2011, e Double Rift #6, 2013), dispostos nas paredes laterais, nos fazem olhar de volta, através do vidro e do pátio, para a sala oposta, em busca de uma outra fenda que acabamos de deixar para trás (Double Rift #4, 2011). E então reencontramos, lá no fundo, o painel de azulejos de Burle Marx. Com isso, à medida que nos movemos, vamos construindo também uma leitura perceptiva da planta da casa, em sua geometria retilínea e organização espacial. 

Depois que nosso olho percorre os desenhos lineares (Drawings after Circuit, 1972) dispostos na parede oposta à entrada da sala maior, mesmo as colunas de mármore branco, cuja presença antes mal sentíamos (seja por serem tão esbeltas, seja porque estiveram tanto tempo ocultas sob painéis), revelam-se como se nunca tivessem estado ali antes. Toda a linearidade dos desenhos parece subitamente se desdobrar então nos elementos estruturais da casa, em cuja verticalidade subitamente nos reconhecemos. Somos impelidos assim a dar mais voltas e olhar e olhar de novo em todas as direções, já sabendo a esta altura que toda a percepção é transitiva, e que a experiência dessa obra única (casa+desenhos) nunca se esgotará. Porque não é só a nossa experiência que varia em função de fatores como a hora do dia e a angulação do sol; também os desenhos reagem à luz natural e seguem se transformando continuamente ao longo do período da exposição. 

Não por acaso, no gabinete, recinto mais intimista da casa, Serra expôs apenas cadernos e blocos com seus desenhos cotidianos, que define como “notações”. Ali os desenhos foram alinhados em duas vitrines brancas, que contrastam com a madeira escura que reveste as paredes. Essas vitrines, por sinal os únicos elementos expositivos introduzidos por Serra em toda a mostra, foram dispostas no sentido transversal à varanda, de modo a permitir a passagem de luz (natural e artificial) nos dois sentidos (de fora para dentro, de dia; de dentro para fora, de noite). 

Salas da exposição Richard Serra: desenhos na casa da Gávea, no IMS no Rio de Janeiro. No alto: obras da série Courtauld transparency; acima: Reversals. Fotografias de Cristiano Mascaro.

Nas duas salas que compõem o corpo oposto à entrada, Serra dispôs desenhos de dimensões intermediárias que lidam com procedimentos de repetição que pautam o repertório conceitual e operacional do artista (Drawings for the Courtauld, 2013, e Reversals, 2013). Drawings for the Courtauld são transparências que se alinham com a pintura cubista e a arquitetura corbusieriana, ao buscar, com os meios do desenho, a abolição da relação figura e fundo arraigada na tradição artística ocidental. O enfrentamento com a história do desenho se explicita aqui mais uma vez, do ponto de vista de quem quer livrar o desenho do projeto, e procura, antes, “trabalhar de um modo não antecipado” [9]. Já a lógica de Reversals provoca uma leitura centrífuga que acaba nos jogando de novo no vazio central do pátio, que funciona agora como o ponto fulcral de um espaço giratório e reforça ainda mais a ambiguidade entre interior e exterior que marca tanto a arquitetura desta casa quanto algumas das melhores esculturas urbanas de Serra, desde Sight point (1972). 

No seu conjunto, os desenhos geram assim um campo de forças com o qual nem os espaços originais da casa nem a casa-galeria contavam. Ativado pela cuidadosa disposição dos desenhos, o espaço – apreendido simultaneamente de dentro para fora e de fora para dentro – ganha uma profundidade que faz vibrar a sucessão de panos de vidro com uma intensidade inaugural. Ao mesmo tempo em que as brechas dos Rifts instilam na casa uma outra espécie de transparência, bem menos exuberante e mais próxima do sentido indicado por Colin Rowe [10]: uma transparência que recusa a literalidade cristalina do vidro e se situa no plano do imaginário, avivando o ato fenomenológico de espacialização do desenho.

 

* Fotografia do destaque é de Cristiano Mascaro

 

[1] Serra, Richard. “Conferência Belknap”. in: Richard Serra. Escritos e entrevistas, 1967-2013. São Paulo:Instituto Moreira Salles, 2014. p.239.

[2] Em entrevista conduzida por Rodrigo Naves na abertura da exposição no IMS, em 29 de julho de 2014, Richard Serra citou, por exemplo, Mies van der Rohe, Rem Koolhaas, Frank Gehry e I.M.Pei.

[3] Projeto que acabou sendo desenvolvido apenas por Eisenman, após o afastamento nunca muito bem esclarecido de Serra.

[4] Ver Eisenamn, Peter. Houses of cards. Nova York: Oxford University Press, 1987.

[5] Ver Eisenamn, Peter. Diagram Diaries. Londres: Thames & Hudson, 2001.

[6] Serra, Richard, “Interview. Peter Eisenman” in: Richard Serra. Writings / Interviews. Chicago/Londres: University of Chicago Press, 1994, p. 146. (tradução livre da autora)

[7] Serra, Richard. “Entrevista por Alfred Pacquement”. in: Richard Serra. Escritos e entrevistas, 1967-2013. São Paulo:Instituto Moreira Salles, 2014. p 111.

[8] A primeira, também de desenhos (“Rio Rounds”), foi realizada no Centro Helio Oiticica em 1997.

[9] Serra, Richard. “Conferência Belknap”. in: Richard Serra. Escritos e entrevistas, 1967-2013. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2014. p.236.

[10] Rowe, Colin e Slutzky, Robert. “Transparência literal e fenomenal”. in: Gávea 2, set. 1985, p.33-50.

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