Shoah, experiência renovada – Por David Denby

serrote

24.02.11

Este texto foi publicado originalmente na revista The New Yorker, em sua edição de 10/1/2011. O artigo trata do documentário sobre o Holocausto Shoah e de seu realizador, o francês Claude Lanzmann, ampliando a discussão sobre o extermínio de judeus durante a Segunda Guerra. Lanzmann (que está entre as atrações da Festa Literária Internacional de Paraty – Flip deste ano) lança seu livro de memórias A lebre da Patagônia no Brasil, pela Companhia das Letras, em junho.

Shoah e uma nova visão da história
Por David Denby
Tradução de Alexandre Morales

Shoah, o dilacerante documentário de nove horas sobre o Holocausto de Claude Lanzmann, exibido pela primeira vez em 1985 em Nova York, foi relançado ali em seu vigésimo quinto aniversário e logo aparecerá em museus, universidades e seletas salas de cinema de todo o país. Em 1985, o filme me deixou arrasado e indignado, comovido com suas passionalidades esclarecedoras e sua retórica eletrizante, assombrado com sua forma revolucionária.

Lanzmann, cineasta, jornalista e intelectual francês, dispensou fotografias, cinejornais e documentos (todos os materiais históricos habituais) e reconstruiu o passado a partir do que restou dele no presente. Ele recorreu ao testemunho de três grupos de pessoas: sobreviventes dos campos de extermínio da Polônia – a maioria deles judeus que trabalharam para os nazistas e fugiram dos campos ou lhes sobreviveram com o fim da guerra -, guardas e funcionários nazistas e testemunhas polonesas – moradores de propriedades rurais próximas aos campos, que reagem às lembranças com um bestificado sacudir de ombros e alguns sorrisos, e outros aldeões que fazem típicas observações antissemitas. E Lanzmann filmou, com precisão obsessiva e eloquência poética, os remanescentes físicos: os trens, os trilhos e as estradas que conduziam prisioneiros para Treblinka, Sobibor e Auschwitz-Birkenau – campos que os poloneses deixaram em pé meio como memoriais, meio como descampados amaldiçoados e deploráveis, cujos arredores e interiores ele percorre de cima a baixo e de um lado a outro.

Tudo isso era fascinante, mas me perguntei se ver Shoah novamente poderia ensinar algo novo aos espectadores. E não haveria um possível perigo moral na fascinação, no hábito de retornar seguidas vezes à catástrofe judia para um exercício emocional sem obter iluminação adicional disso? No entanto, há uma nova e surpreendente interpretação do período que torna imprescindível rever Shoah não como uma imersão em lástimas, mas como uma experiência renovada.

Recentemente, Timothy Snyder, professor de história da Universidade de Yale, lançou um impressionante livro intitulado Bloodlands:Europe between Hitler and Stalin [Nova York: Basic Books, 2010], que narra não só o Holocausto mas também os vários assassinatos em massa perpetrados durante os anos 1933-1945 tanto pelos nazistas como pelos soviéticos, especialmente na Polônia oriental, nos Países Bálticos e em áreas nominalmente pertencentes à União Soviética, como as da Ucrânia e da Bielorússia. Segmentos desse vasto território foram tomados de assalto por exércitos e ocupados pelo menos três vezes: primeiro pelo Exército Vermelho, depois que o pacto entre Hitler e Stálin de 1939 praticamente cedeu a Polônia oriental e os Países Bálticos à União Soviética; em seguida, a partir de junho de 1941, com o ataque alemão às mesmas regiões, uma investida com um contingente de três de milhões de homens que posteriormente avançou a fundo na União Soviética; e depois, evidentemente, com o contra-ataque soviético e a “liberação”, que expulsou os alemães da União Soviética e do Leste Europeu em 1944 e 1945. Cada exército era acompanhado por unidades de extermínio: os destacamentos nazistas, pelos esquadrões da morte da SS, pela “polícia de segurança” alemã e por assassinos locais que eram recrutados, ou intimidados, para fazer sua parte; os soviéticos, pela polícia secreta, o NKVD [sigla em russo para Comissariado do Povo para Assuntos Internos], que em 1939 (e depois) deu continuidade aos extermínios em massa iniciados por ordem de Stálin no início dos anos 1930, quando 5,5 milhões de pessoas, a maioria na Ucrânia, estavam morrendo de fome. No total, de 1933 a 1945, 14 milhões de não-combatentes morreram naquilo que Snyder chama de “bloodlands” [terras sangrentas].

Como demonstra Snyder, os nazistas e os soviéticos podem ter tentado destruir uns aos outros no encarniçado combate de 1941 a 1945, mas se olharmos para todo o período de treze anos que ele descreve, os dois poderes totalitários atuaram de quando em quando sob uma espécie de acordo macabro, mediante o qual cada lado incentivava ou até mesmo autorizava o outro. Em 1940, por exemplo, quando os soviéticos assassinaram 22 mil oficiais da reserva poloneses na floresta de Katyn, estavam ecoando o massacre das categorias profissionais polonesas perpetrado pelos alemães durante a ocupação da Polônia ocidental. E em 1944, quando o Exército Nacional [de resistência] polonês se insurgiu contra a ocupação alemã em Varsóvia, os soviéticos, que haviam encorajado o levante, combateram e derrotaram os alemães fora da cidade, mas em seguida ficaram aguardando por meses enquanto os nazistas esmagavam os poloneses dentro dela. Quando os soviéticos finalmente entraram em Varsóvia, não só desbarataram os alemães, mas também reprimiram os antinazistas sobreviventes com a ajuda dos comunistas poloneses, terminando assim o serviço de sufocar o movimento de independência polonês.

Sem minimizar de forma alguma o holocausto judeu, Snyder sustenta que ele não deve ser visto em separado dos muitos outros massacres em massa de civis – dos milhões de poloneses, bielo-russos, bálticos e ucranianos assassinados por motivos políticos ou ideológicos, ou simplesmente porque eram um estorvo que precisava ser removido para dar espaço à ocupação alemã ou soviética.

Por certo, não era esse tipo de relato histórico em larga escala que Lanzmann tinha em mente. Shoah trata tão-somente da guerra contra os judeus. Na verdade, o filme é dedicado a um único aspecto dessa guerra: o transporte de judeus de vários cantos da Europa para os centros de extermínio na Polônia e as matanças por gás, primeiro em Chelmno, onde eram usadas caminhonetes em movimento, e depois em Treblinka, Sobibor e Auschwitz-Birkenau, com suas câmaras de gás e seus fornos crematórios.

Pelo filme de Lanzmann, não ficamos sabendo que à época da Conferência de Wansee – realizada em Berlim em janeiro de 1941, na qual a Solução Final foi abertamente tramada pela SS – talvez um milhão de judeus já houvessem sido assassinados, principalmente a tiros em suas próprias moradias, com seus corpos despejados em covas e enterrados. Aproximadamente tantos judeus foram mortos a balas quanto por gás no Holocausto, um fato que não é amplamente conhecido até hoje. Por certo, precisamos saber tudo, compreender tudo, sentir tudo. O livro de Snyder, ao fazer um relato original do período com abundância de detalhes (enunciados em frases assertivas taciturnamente concisas), vai expandir essas três faculdades em qualquer um que acompanhe sua penosa porém lúcida exposição. O principal argumento do autor sobre a tragédia judia, tal como eu o interpreto, é o de que não conseguiremos elucidar o Holocausto se não elucidarmos toda a história do período.

O que ele não enfatiza (apenas diz de passagem) é que a guerra de Hitler contra os judeus foi uma tentativa de eliminar um povo inteiro – erradicar sua identidade completamente -, enquanto a campanha de Stálin contra, digamos, a Ucrânia não foi uma tentativa de eliminar todos os ucranianos, e sim aqueles que presumivelmente poderiam resistir à coletivização e ao triunfo do comunismo. Mas não tem nenhum cabimento entrar numa disputa de horrores, nem numa disputa de cronistas: Snyder é um historiador, e Lanzmann, um artista; eles fazem coisas diferentes.

Assistindo a Shoah novamente, discerni, com a ajuda de Snyder, o caráter específico daquilo que o filme demonstra, mas sua força não diminuiu. Ao contar com o testemunho dos participantes, Lanzmann trouxe o passado para o presente – o eterno presente, renovado no ato da recriação existencial diante da câmera. Os nazistas se mostram de um modo ora hesitante, ora orgulhoso, com acanhadas admissões de dó dos judeus ou com um ultrajante dó de si mesmos como carrascos sobrecarregados de trabalho; os sobreviventes depõem com uma vividez vertiginosa. Um deles, o judeu eslovaco Filip Müller, tinha vinte anos quando foi membro de um destacamento de trabalho especial em Auschwitz. Ele descreve a configuração da câmara de gás; ao mesmo tempo, a câmera de Lanzmann, como se adentrasse o próprio inferno, desloca-se sob uma luz bruxuleante através da câmara. Num segundo relato, acerca do tempo em que ficou em Birkenau, Müller descreve sua desolação quando um grupo de tchecos que tinham sido mantidos vivos por alguns meses subitamente deparou a morte, e ele, não mais conseguindo suportar o que estava fazendo (removendo e queimando os corpos), juntou-se a eles na câmara, onde várias mulheres prestes a morrer lhe disseram que ele tinha de sobreviver e contar ao mundo o que vira. As duas histórias de Müller, com sua precisão e seu misto de horror e saturação emocional, estão além de qualquer coisa que a ficção nos tenha dado no cinema.

Lanzmann adentra Birkenau repetidas vezes. Filmando com sua câmera sobre os trilhos, ele atravessa a entrada – uma abertura esquadriada num comprido edifício horizontal – e para na rampa onde os passageiros eram descarregados. Este é um filme visionário que obstinadamente esquadrinha o terreno. Na resenha negativa e quase comicamente obtusa que Pauline Kael escreveu sobre o documentário nesta revista [The New Yorker], ela diz sobre Lanzmann que “o cerne de sua obsessão parece ser nos mostrar que os gentios vão voltar a fazer aquilo com os judeus se tiverem a oportunidade”. Mas a noção de que o Holocausto pode voltar a ocorrer é exatamente aquilo de que Shoah não trata. Trata-se ali da monstruosidade de que ele tenha uma vez ocorrido. Shoah é uma obra topográfica. Onde, especificamente, os trens paravam em Sobibor? A quantos metros ficava a entrada do campo? Hoje Sobibor é apenas um descampado, mas Lanzmann mede a distância, dimensiona-a com passos. Ele não pergunta como a moralidade pode ter abrigado o Holocausto; pergunta como a realidade pode tê-lo abrigado. Muito longe de ser uma obra limitada, Shoah torna-se um enfurecido protesto metafísico contra a natureza da própria existência.