Sincopando o Cyro

Música

19.05.13

O Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro realiza no dia 21 de maio, às 20h, uma homenagem aos 100 anos de nascimento de um dos maiores intérpretes da música brasileira, Cyro Monteiro (1913-1973). Nei Lopes levará ao palco do IMS o show Sincopando o Cyro, com músicas que marcaram a carreira do cantor. Confira no texto abaixo e ouça na Rádio Batuta algumas pérolas do repertório selecionado por ele para este espetáculo.

Sincopando o Cyro

Nascido em 1913 no Rocha ? bairro surgido ao redor da segunda estação do “trem da Central” depois de Mangueira, hoje extinta ? Cyro Monteiro foi um carioca de classe média. Seu pai, dentista e funcionário público, era conhecido como “Capitão Monteiro”, título que parece se referir a uma patente da Guarda Nacional, corporação criada no Império e extinta em 1918.

Era sobrinho do grande pianista de samba Nono (Romualdo Peixoto, conhecido como o “Chopin do samba”); e também primo de Cauby Peixoto e seus irmãos músicos, Araken, Andyara e Moacyr Peixoto. Foi criado em Niterói; mas em 1938, casado com a cantora Odete Amaral (até 1949), mudou-se para o bairro do Riachuelo, vizinho ao Rocha.

Cyro estreou na música, aos 20 anos, em dupla com Silvio Caldas, substituindo o cantor Luiz Barbosa. No ano seguinte, 1934, ingressou na Rádio Mayrink Veiga; e gravou seu primeiro disco dois anos depois. No ambiente do rádio, ganhou o apelido “Formigão”, talvez porque gostasse de doces ou, quem sabe, pela forma da verruga escura que ostentava no lado esquerdo da fronte. A partir daí, com seu estilo inigualável, foi lançador de grandes êxitos, dentre os quais pinçamos alguns exemplares para formar o repertório de nossa apresentação.

Sincopando o Cyro

Se acaso você chegasse (Lupicínio Rodrigues, 1938)

Muito mais conhecido por seus sambas-canção pungentes, como Vingança, Nervos de aço, Nunca e Ela disse-me assim, o gaúcho Lupicínio teve neste samba brejeiro e buliçoso seu primeiro sucesso. Êxito, também, sem dúvida, devido à interpretação de Cyro Monteiro, seu criador. Acrescente?se que, segundo Lupicínio, a letra é a confissão da “ursada” cometida por ele contra um amigo.

Oh, Seu Oscar (Wilson Batista e Ataulfo Alves, 1940)

Para muitos, Wilson Batista é apenas aquele da famosa polêmica com Noel Rosa. Entretanto, muito além disso, o “Cabo Wilson”, campista mais malandro do que muito malandro carioca, foi dos maiores cronistas do samba e um dos compositores mais prolíficos, em vários gêneros. Observe-se que “Seu Oscar”, no linguajar carioca da época, era o “Mané” de hoje.

O bonde São Januário (Wilson Batista e Ataulfo Alves, 1941)

Aparentemente, Ataulfo e Wilson Batista, por temperamento e estilos de vida, não dariam “boa liga”. Mas a arte e, no caso, o samba têm mistérios. Daí terem os dois formado uma dupla admirável e de grande sucesso; que encontrou em Cyro Monteiro o intérprete na medida certa. As gravações de Oh, Seu Oscar e O bonde São Januário não nos deixam mentir.

Os quindins de Iaiá (Ary Barroso, 1941)

O chamado “samba-exaltação” é um estilo de samba de caráter grandioso, com letra patriótico-ufanista e arranjo orquestral pomposo. Difundido no contexto de propaganda do Estado Novo (1937-1945), o primeiro grande exemplar desse subgênero é Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, lançado em 1939. Exemplares do estilo foram bastante explorados em encenações do teatro de revista. Como é o caso deste Os quindins de Iaiá, lançado em disco por Cyro Monteiro ? um samba-exaltação light, como hoje se diz. É até um pouquinho malicioso; e mais brejeiro ainda pela interpretação do “Formigão”.

Beija-me (Roberto Martins e Mário Rossi, 1943)

Roberto Martins foi coautor de vários sambas e marchas conhecidos, como Favela (com Waldemar Silva), Meu consolo é você (com Nássara), Cordão dos puxa-sacos (com Frazão), Pedreiro Waldemar (com Wilson Batista) e Cadê Zazá? (com Ari Monteiro). Mário Rossi, um pouco menos: o bolero Que será?, sucesso de Dalva de Oliveira, e o samba O sorriso do Paulinho, na voz de Isaurinha Garcia, são alguns. O maior sucesso de ambos, isolados ou em parceria, foi este Beija-me, magistralmente lançado por Cyro Monteiro, sendo um dos destaques do ano de 1943.

Falsa baiana (Geraldo Pereira, 1944)

Segundo Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, no livro A canção no tempo, de 1998, foi inspirado na esposa do compositor Roberto Martins, que se fantasiou de baiana no carnaval, embora não tivesse nenhum espírito carnavalesco. O próprio marido observou isso e mostrou: “Olha aí, Geraldo, a falsa baiana”. Nascia aí um dos mais eloquentes exemplos do samba sincopado, estilo em que o deslocamento do tempo forte da música é levado às últimas consequências, às vezes até dando a falsa impressão, momentânea, de que a divisão rítmica está errada. Geraldo Pereira foi um mestre do estilo sincopado. E seu mais importante intérprete foi Cyro Monteiro, que lhe deu, com a gravação deste samba, seu primeiro sucesso.

Escurinho (Geraldo Pereira, 1954)

Nascido em Juiz de Fora, mas radicado em Mangueira, Geraldo Pereira escreveu letras que focalizam, com humor, o cotidiano das comunidades negras cariocas, em composições como Falsa baiana, Bolinha de papel, Cabritada mal-sucedida, este Escurinho etc. Foi efetivamente um sambista, na pura acepção do termo; e foi mangueirense dissidente, pois não pertencia à Estação Primeira e, sim, à Unidos de Mangueira, que competiu com a verde e rosa até 1940. Este samba, meio autobiográfico talvez, foi o último sucesso de Geraldo, que morreria no ano seguinte, pouco depois do lançamento, na voz do “Formigão”.

Boogie-woogie na favela (Denis Brean, 1945)

À época do Estado Novo, os Estados Unidos assinavam com o Brasil e outros países da América Latina um tratado de “cooperação” escudado no que se chamou então “Política da Boa Vizinhança”. Foi aí que Carmen Miranda foi para os States, e que o Brasil se encheu de óculos Ray-Ban, Coca-cola e boogie-woogie, estilo de jazz criado pelos músicos afro-americanos. O compositor paulista Denis Brean, de nome civil Augusto Duarte Ribeiro, glosou muito bem esse momento. Amigo e grande influenciador do cantor João Gilberto, o compositor soube trazer para o samba a definidora sequência de acordes que caracteriza o acompanhamento de piano do estilo. E daí inaugurou quase um subgênero. E Cyro Monteiro foi quem “cortou a fita” nessa inauguração.

Deus me perdoe (Lauro Maia e Humberto Teixeira, 1946)

Lauro Maia foi pianista, compositor e arranjador cearense radicado no Rio. Era conterrâneo e cunhado de Humberto Teixeira, autor de grandes sucessos em parceria com Luiz Gonzaga, como Asa branca, Baião, Qui nem jiló, Juazeiro, Assum preto etc. Da dupla, Cyro Monteiro lançou este samba, Deus me perdoe, triste, pungente, mas grande sucesso do carnaval de 1946.

Amei tanto (Baden Powell e Vinicius de Moraes, 1963)

Um dos maiores admiradores de Cyro Monteiro foi Vinicius de Moraes ? que inclusive deve ter sido o responsável pela participação do “Formigão” na montagem original da famosa peça Orfeu da Conceição, vivendo o papel de Apolo, pai do herói, que era personificado por Haroldo Costa. Sobre ele, disse o “poetinha”: “Ele tem o dom e a vocação da amizade, e querer bem a ele é para mim um teste de caráter. Ele é um grande abraço em toda a humanidade” (Sesc-SP, op.cit., p. 95). Quanto a este Amei tanto, observe-se que ele tem o clima dos sambas do Orfeu. Só que a melodia não é de Tom Jobim, e sim do violonista Baden Powell, saudado por Vinicius como “maravilhoso duende da floresta; floresta afro-brasileira de sons, gênio da moderna canção popular”). Saravá!

Minha palhoça (J. Cascata, 1935)

Primeiro samba gravado do compositor Álvaro Nunes, famoso como J. Cascata, cantado por Luiz Barbosa, pioneiro na batucada com o chapéu “palheta”, que a caixa de fósforos veio substituir; mas lançado em disco por Silvio Caldas. Típico samba sincopado, precursor do samba de breque, seu autor foi um dos grandes de seu tempo, a ponto de até, em determinado momento, ser dono (ou gerente) da célebre Gafieira do Irajá. Segundo a genitora do artista, ele compôs este samba nas férias que passou num sítio em Jacarepaguá, onde havia tudo o que é descrito na letra. Cascata? A obra tem também a primazia de ter sido o primeiro samba gravado na Alemanha, por uma cantora chamada Bibi Miranda. Cyro Monteiro, herdeiro musical de Luiz Barbosa, o gravou em 1965. Definitivamente.

Tive, sim (Cartola, 1968)

Um dos sambas que marcam a retomada da carreira do legendário Cartola. Nasceu, certamente, inspirado pelo grande amor e companheirismo que encontrou em sua união com Dona Zica, a outra metade da marca “Zicartola”. Separado da cantora Odete Amaral desde 1949, Cyro Monteiro encontrou em Marilu, companheira até o fim da vida, sua contraparte. E, como Cartola, homenageou sua companheira com o samba Minha Marilu, parceria com Dias da Cruz, lançado em 1962.

Formosa (Baden Powell e Vinicius de Moraes, 1965)

Outro samba querido da dupla Baden & Vinicius, composto especialmente para o dengoso e cativante Cyro, é Formosa, gravado em 1965.

Cyro Monteiro, falecido aos 60 anos, foi realmente “um grande abraço em toda a humanidade”.

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