Sobre a plasticidade do machismo na cultura brasileira

Colunistas

03.11.15

Começou na Cinelândia, no Rio de Janeiro, semana passada, já se repetiu em São Paulo e Belo Horizonte. Promete se repetir em Florianópolis, Aracaju e em inúmeras capitais, em incontáveis acontecimentos – aqui no sentido mais estrito e filosófico do termo – políticos. Acontecimento que evidencia um paradoxo aparentemente incontornável: os movimentos feministas foram muito bem sucedidos nos seus objetivos de promover emancipação para as mulheres nos último 60 anos e o machismo não acabou.

Por conta desse estranho arranjo, marca do que estou chamando de plasticidade do machismo na cultura brasileira, mulheres de todas as idades, matizes ideológicos, autodeclaradas feministas ou não, mulheres suprapartidárias, magras, gordas, brancas, negras, hetero ou homossexuais estão nas ruas gritando #foracunha e protestando contra o PL 5069, que retoma a exigência de BO e exame de corpo delito no IML para mulheres vítimas de violência sexual que precisem recorrer a um aborto na rede pública de saúde.

Organizadas em diversos coletivos e movimentos embaladas por palavras de ordem que retomam algumas das pautas das manifestações de rua de 2013 – como o fim da polícia militar –, as mulheres são hoje ao mesmo tempo um recomeço e uma novidade na política brasileira. Recomeço porque a segunda onda do feminismo completa 40 anos, iniciada em 1975, quando um grupo de mulheres cariocas organizou uma semana de debates intitulada “O papel e o comportamento da mulher na realidade brasileira”, de onde saiu a primeira organização feminista do país. Recomeço também por que as pautas – violência sexual e direito à orientação de gênero, como na prova do Enem; direito ao aborto e liberdade para o próprio corpo, como nas palavras de ordem contra o projeto de lei – são praticamente as mesmas.

Longe de ser uma repetição, esse recomeço é carregado de novidades. Passamos os últimos 15 anos sob ataque cerrado contra conquistas e avanços obtidos nas lutas dos anos 1970/1980/1990. Há nas ruas gerações de meninas nascidas e crescidas achando que o preconceito contra a mulher era coisa da sua avó, sob o discurso de que o feminismo não era mais necessário. Descobriram, seja no assédio sexual no trem, seja na primeira briga com o primeiro namorado, a plasticidade do machismo que é, do meu ponto de vista, uma das explicações para que, nas últimas décadas, tanto tenha mudado em relação a situação da mulher nas sociedades ocidentais – inclusive a brasileira – e tanto ainda seja necessário mudar para que desigualdades de gênero sejam superadas. É o que está promovendo nas ruas o encontro gerações de feministas dos anos 1970 com estudantes secundaristas nas ruas, ambas continuam querendo basicamente a mesma coisa: meu corpo, minhas regras, para ficar com um dos mais fortes slogans das ruas.

Quando penso na plasticidade do machismo, me sinto obrigada a indicar também a plasticidade do capitalismo, sobre a qual escrevi recentemente, pensando em como a formas de opressão se modificam para permanecer no mesmo lugar de poder. Diferenças salariais entre homens e mulheres, maior quantidade de homens nas esferas da política, menor número de mulheres em cargos de chefia são apenas alguns dos indicadores de que conquistas importantes ainda são insuficientes para superar a condição de subalternidade da mulher.

Se na Constituinte de 1988 o que mobilizou as feministas organizadas foi o chamado “lobby do batom”, nas manifestações de rua da semana passada a “conexão batom” promoveu reconhecimento entre as que estreavam pela primeira vez numa manifestação feminista. As antigas gerações costumam achar que abriram caminhos, enfrentando uma série de restrições sociais e formais. De fato, registramos avanços fundamentais em todos os campos da vida social, como a lei, abolida em 1961, que exigia das mulheres casadas autorização do marido para viajar ou a impossibilidade de uma mulher declarar-se chefe de família. A novidade, no entanto, está no fato de que a plasticidade do machismo deu novas formas à velhas opressões. Que, felizmente, tem se deparado com a criatividade das mulheres: primeiro, foi a campanha #primeiroassedio, e logo em seguida veio a campanha #agoraequesaoelas.

Como bem percebe a filósofa Judith Butler, o machismo não é apenas uma estrutura de poder de homens contra mulheres, mas um sistema de poder sobre corpos, desejos e subjetividades. É neste ponto que o subgrupo feminista se encontra como o grande grupo de mulheres, e ambas se fortalecem ao fazer do #foracunha uma pauta potente porque capaz de denunciar a plasticidade de um machismo que se apresenta sob a forma de cinismo, quando moralismo religioso e imoralidade política se unem sem nenhum constrangimento.

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