Topografia da imaginação

Colunistas

06.07.16

Entre as obras em exposição na pequena retrospectiva dos principais nomes da Arte Povera organizada pelo Centro Pompidou (Beaubourg), em Paris (até 29 de agosto), três filmes enfocam por diferentes ângulos Il Grande Cretto (A Grande Rachadura) que Alberto Burri (1915-1995) concebeu nos anos 1980 sobre as ruínas de uma cidadezinha na Sicília.

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Il Grande Cretto, de Alberto Burri

Gibellina desapareceu num terremoto em 1968. Ficaram os escombros. Uma nova cidade foi construída a 18 km dali, com a colaboração de artistas do mundo inteiro, e logo se converteu num lugar medonho, uma cidade fantasma com cara de conjunto habitacional, um monstro da arquitetura planejada e um equívoco artístico.

Convidado a colaborar no projeto, Burri saiu-se com uma contraproposta mais ousada: em vez de instalar uma obra de arte nas ruas da cidade nova, propôs cimentar os 120 metros quadrados onde jaziam as ruínas da cidade antiga. Ao longo dos anos 1980, o artista despejou toneladas de cimento sobre os antigos quarteirões de escombros, formando uma estranha superfície de blocos que acompanham o relevo do terreno e o traçado das ruas ou das fendas criadas pelo terremoto, fazendo lembrar as rachaduras de uma pintura antiga (ou de algumas telas do próprio Burri) numa escala milhares de vezes maior. É como um labirinto de blocos de cimento, perdido na paisagem rural, entre as colinas do interior da Sicília. A imensa escultura ao ar livre foi abandonada por falta de verbas, no final dos anos 1980, e retomada ano passado, a tempo de ser concluída e filmada para a retrospectiva do artista no Guggenheim, em Nova York.

Num dos três filmes projetados no Beaubourg, o cineasta e compositor belga Thierry de Mey usa a obra de Burri como cenário para uma coreografia de Manuela Rastaldi, com música tradicional da Sicília. A dança faz sobressair a escala humana do labirinto. De Mey já havia filmado uma coreografia incrível, com mais de 50 bailarinos (entre eles, Anne Teresa de Keersmaeker, Sidi Larbi Cherkaoui e Damien Jalet), nas florestas dos arredores de Bruxelas e de Salzburgo, ao som dos “Contos da Mamãe Gansa”, de Ravel. Em Il Grande Cretto, conforme os bailarinos avançam pelas ruas/rachaduras, deslizando entre os blocos de cimento que guardam as ruínas da cidade antiga, também vão revelando, pelo movimento, o desenho sinuoso que é ao mesmo tempo um resquício da planta baixa da cidade e de sua destruição. Em vez de preservar a imobilidade da morte nas ruínas, o monumento/mausoléu concebido por Burri celebra o movimento da história, a vida e a tragédia simultâneas, no presente. A obra nasce das fendas que engoliram a cidade. Por mais paradoxal que possa parecer, soterrar o que restava de Gibellina significa, aqui, reerguê-la em potencial, imaginária, viva, orgânica e presente.

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Uma piazza em Nuova Gibellina, a cidade reconstruída

No documentário que Petra Noordkamp fez para a retrospectiva do artista no Guggenheim (também exibido no Beaubourg), um francês que viaja pela Sicília em busca dos traços de Don Corleone, o personagem de O Poderoso Chefão, e que depara de repente com a obra de Burri, silenciosa e enigmática no meio da paisagem, rende-se imediatamente às ruas/rachaduras, como uma criança caminhando para dentro de um sonho. A imensa escultura é uma miragem, um ímã para a imaginação. Ela convida a trilhar os caminhos abertos pelas fendas e a imaginar e a reconstruir a cidade pela imaginação.

É o contrário da colina ao lado do Teufel See (Lago do Diabo), na entrada da floresta de Grunewald, em Berlim. Muitas vezes eu passei por lá, de bicicleta, quando vivia na cidade, sem me dar conta de que ali embaixo estivessem soterrados os primeiros prédios da universidade nazista planejada por Hitler. Descobri isso outro dia, ao ler a tradução francesa recém-publicada (ed. Macula, 2016) do livro de Hanns Zischler (ensaísta e ator, protagonista de No Decorrer do Tempo, de Wim Wenders) sobre a cidade: Berlim é grande demais para Berlim (Berlin ist zu groB für Berlin, ed. Galiani, Berlim, 2013).

A Faculdade Técnico Militar, um imenso complexo arquitetônico fascista, foi concebida como a primeira etapa da nova universidade, para “responder às prioridades ditadas pela economia de guerra”. A construção foi interrompida em 1941, justamente por conta da penúria da guerra, e acabou soterrada depois de 1945 por uma montanha de detritos originários dos escombros da cidade. Foi um modo “de enterrar e apagar a lembrança” debaixo de um morro de história fora do lugar, “uma anomalia geológica” formada por várias camadas de tijolos, cerâmicas, botões e outros objetos domésticos deslocados, uma excrescência em meio a uma paisagem predominantemente plana.

Nos anos 1960, a estação do serviço de informação do exército americano foi instalada no topo do morro, com sua antena, seu radar e suas torres brancas, dando um ar de ficção científica à paisagem. A estação foi abandonada depois da queda do Muro e o lugar se converteu em ponto de encontro para aficionados de pipas e aeromodelismo nos fins de semana.

O Morro do Diabo (Teufelberg) é resultado da fabricação de uma natureza sem memória (feita, paradoxalmente, das ruínas da cidade). Esse deslocamento é também uma fuga do trauma da história, uma campanha de apagamento/esquecimento. É o inverso do que propôs Burri em Gibellina. Ao incorporar as marcas da tragédia (da natureza, do terremoto) para compor uma nova planta baixa da cidade em tamanho real, como escultura, o artista pôs em movimento uma concepção presente da história, contra o esquecimento mas também contra a imobilização da ruína.

 

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