Tragédia não anunciada

Fotografia

23.02.16

Luciano Carneiro é um ponto fora da curva do destino minimamente aceitável para um fotojornalista sempre metido mundo afora em guerra, revolução ou tensão político-social de toda sorte. Foi esse atrevimento profissional flagrante na exposição “Do arquivo de um correspondente estrangeiro: fotografias de Luciano Carneiro”, inaugurada dia 6 de agosto no centro cultural do IMS Poços de Caldas, após uma temporada no IMS São Paulo, que o levou, como correspondente internacional de O Cruzeiro, a saltar de paraquedas com o exército americano na Guerra da Coreia (1951). Quando Fidel Castro tomou o poder em janeiro de 1959, lá estava o cabra cearense reportando a chegada vitoriosa dos revolucionários a Havana. Onze meses depois, Luciano Carneiro morreu estupidamente aos 33 anos a bordo de um avião de carreira da Vasp, um Viscount, abatido em procedimento de pouso no Galeão após colisão a 500 metros de altitude com um Fokker S11 da FAB em missão de treinamento de piruetas aéreas naquela importante rota da aviação comercial. O destemido Luciano voltava da cobertura de um baile de debutantes – o primeiro de Brasília realizado antes mesmo da inauguração da capital federal. Dá para acreditar em destino assim?

Estampado em letras garrafais na manchete da edição do Jornal do Brasil de 23 de dezembro de 1959, ‘O DESASTRE DE RAMOS’ foi notícia de primeira página em todo o país, mas chocou particularmente o Rio. Morreram no acidente 42 pessoas: todos os 26 passageiros e 6 tripulantes do voo 233 mais 10 pessoas que ocupavam casas atingidas por destroços na Zona da Leopoldina carioca. O piloto do aviãozinho da FAB, um cadete da aeronáutica, sobreviveu saltando de paraquedas nas imediações do Morro do Alemão. (O site Desastres aéreos relata a tragédia e as investigações que não deram em nada).

O corpo de Luciano Carneiro teria sido encontrado na cabine de comando do turbo-hélice atingido em sua asa esquerda antes da queda, informação que gerou especulações sobre a possibilidade de que o fotógrafo, por instinto de ofício, tenha tentado apurar o que estava acontecendo nos momentos entre a colisão e o choque contra o solo. O mais provável, no entanto, é que ele, também piloto com brevê, um aficionado por aviação, estivesse entrevistando informalmente o comandante da Vasp sobre as características do Viscount.

Não era para Luciano estar naquele voo. Contam os amigos que ele saiu de Brasília a bordo de um avião da Cruzeiro do Sul, mas, durante escala em São Paulo, o destino lhe armou um ardil, segundo depoimento do fotógrafo Flávio Damm, contemporâneo de O Cruzeiro, em entrevista à revista ‘Discursos Fotográficos’ (da Universidade Estadual de Londrina – Uel), de junho de 2013:

Durante a escala em São Paulo, ele encontrou o Elder Martins, um colega cearense. O Elder disse que havia chegado do Rio de Janeiro em um avião novo da Vasp, que estava fazendo a ponte-aérea e voltaria para o Rio dali a alguns minutos. Então o Luciano fez uma maluquice completa: foi ao balcão da Cruzeiro do Sul e pediu para tirarem sua bagagem do avião, que ele não iria mais para o Rio. Mentira! Ele correu para o balcão da Vasp e comprou uma passagem, queria conhecer o avião novo.

Na comoção do velório de Luciano Carneiro, lembra Ziraldo – na época cartunista e relações públicas de O Cruzeiro –, houve um momento inesquecível nas homenagens dos companheiros de trabalho:

Luciano Carneiro Filho conheceu o pai nos álbuns de família repletos de fotos e recortes de jornais caprichosamente reunidos por sua mãe, Maria da Glória Stroebel Carneiro. Quando Luciano morreu, o filho que leva seu nome estava ainda na barriga de dona Glorinha. Durante a infância e a juventude, ele foi descobrindo a importância profissional do pai para o moderno fotojornalismo brasileiro através dos registros de manifestações públicas de admiração e respeito após o desastre aéreo de Ramos.

Arrepia a qualquer um ainda hoje ver a edição de O Cruzeiro de 16 de janeiro de 1960: a revista conseguiu recuperar os rolos de filmes do último trabalho de Luciano Carneiro – inesperadamente preservados nos pertences do fotógrafo após a explosão do avião em que viajava –, e publicou as imagens chamuscadas do baile de debutantes de Brasília em reportagem sem títulos ou legendas que, segundo nota da revista, em condições normais de fechamento, “seriam por êle redigidos quando chegasse à Redação”.

Nesta mesma edição, Rachel de Queiroz escreve em sua coluna “Última página” sobre o amigo que acompanhou “desde os primeiros passos de foca”, no jornal cearense Unitário:

Êle não queria morrer, jamais pensara em morrer, só se comportava em têrmos de vida. Viver perigosamente sim, isso êle entendia e amava. Mas a morte não entrava nos seus cálculos; pois o que gente como êle tem de maravilhoso é exatamente essa insolência de vida, essa ignorância deliberada da morte, como que uma segurança de imortalidade. E um acidente fatal vem como uma traição.

Rachel de Queiroz perdeu outros dois amigos entre os 26 passageiros do voo 233: o casal Lúcia Miguel Pereira e Otávio Tarquínio de Sousa – ela crítica literária, biógrafa, ensaísta e tradutora; ele escritor, historiador e também crítico literário –, dois queridos na vida cultural brasileira. Voltavam para casa no Rio de uma viagem a São Paulo.

Das versões que tentam explicar o que fazia o correspondente estrangeiro Luciano Carneiro na cobertura de um baile de debutantes em Brasília, a que torna o destino menos absurdo garante que ele mesmo pediu para fazer a pauta para conhecer a obra de Oscar Niemeyer. É, a rigor, a única coisa que faz sentido na trama de sua tragédia.

MAIS

Exposição Do arquivo de um correspondente estrangeiro: fotografias de Luciano Carneiro
Informações sobre a exposição, em cartaz no Instituto Moreira Salles Poços de Caldas (6/8/2016 a 22/1/2017), que reúne 150 imagens do noticiário do final dos anos 1940 e da década seguinte publicadas pela revista O Cruzeiro. A mostra dá visibilidade ao talento ainda pouco conhecido de uma das estrelas do lendário fotojornalismo da revista. Destemido em coberturas mundo afora de guerras, revoluções e movimentos sociais, Luciano Carneiro ganhou fama de herói de seu tempo.

VÍDEO | Um retrato de Luciano Carneiro
Entenda um pouco do espírito aventureiro, visionário, competitivo, inovador e sagaz do fotógrafo Luciano Carneiro, revelado em depoimentos de parentes e ex-companheiros de O Cruzeiro.

Luciano Carneiro, um fotojornalista do Brasil no mundo
Luciano Carneiro foi um dos fotojornalistas mais atuantes de seu tempo. Um dos únicos repórteres sul-americanos a cobrir a Guerra da Coreia, em 1951, com seu espírito aventureiro e um brevê de paraquedista saltou sobre as linhas inimigas durante o conflito, ao lado do exército americano.

Acervo Luciano Carneiro no IMS
Página dedicada ao acervo Luciano Carneiro no Instituto Moreira Salles.

A hora e o lugar: conheça os livros de Alice Brill, Guilherme Santos, Jorge Bodanzky, Luciano Carneiro e Otto Stupakoff
Muito diversas entre si, mas com a intenção de registrar os acontecimentos no calor do momento, as fotografias presentes nessa caixa com cinco livros vão do carnaval carioca aos campos de batalha; de uma São Paulo em desenvolvimento à Amazônia; do Brasil ao extremo oriente. O site da ZUM apresenta um aperitivo de cada livro.

LOJA DO IMS

A hora e o lugar

Caixa com cinco ensaios fotográficos que registram os acontecimentos no calor do momento, realizados entre 1919 e 1974 por fotógrafos que fazem parte do acervo do IMS: Alice Brill, Guilherme Santos, Jorge Bodanzky, Luciano Carneiro e Otto Stupakoff.

 

As origens do fotojornalismo no Brasil: um olhar sobre O Cruzeiro (1940-1960)

Livro que acompanhou a exposição de mesmo nome, realizada pelo IMS em 2012, a publicação investiga o início do fotojornalismo no Brasil, tendo como referência a produção dos fotógrafos que atuaram na revista O Cruzeiro.

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