Lee Towndrow

O escritor Ben Lerner

O escritor Ben Lerner

Transfiguração ao contrário

Artes

12.12.16

Seria possível a arte, em sua missão de nos mostrar o mundo e as maneiras que nos relacionamos com ele, nos revelar algo que não queríamos saber  e, com essa revelação, nos trazer dano ao invés de benefício? É o que se pergunta Antony Aumann no artigo “A moral problem for difficult art” (2016), no qual parte também da premissa de que grande parte da arte, para ser realmente apreciada, requer  dedicação do espectador, e que essa dedicação muitas vezes tem como ponto de chegada questões que nos perturbam e nos angustiam. Mas se não isso, qual seria a alternativa?

Aumann explora o pensamento de Søren Kierkegaard, que coloca que a alternativa ao conhecimento e ao autoconhecimento seria desprezar nossos corpos, nossas mentes, e viver na ignorância, já que de uma forma ou de outra não iremos querer ser quem somos, mas sim pessoas diferentes, com passados e futuros diferentes, que proporcionem narrativas que conectem um ao outro para que façam sentido entre si. Kierkegaard acredita que é para lidar com essa sensação que nos associamos a histórias de ficção, que são versões mais estruturadas de nós mesmos do que a verdade inapreensível.

Nos últimos anos, o empreendimento de olhar para a própria vida e tentar narrá-la tem aparecido em uma série de romances de autoficção. Além disso, recursos metanarrativos se misturam a perspectivas atravessadas pelas artes visuais, que aparecem em situações do enredo. A aproximação entre autoficção e arte pode ser explicada tanto pela insuficiência dos formatos, em tempos de vida compartilhada pela internet – seja da literatura, da história ou das artes – como também pela arte ter adquirido uma dimensão mais narrativa, que necessita de uma espécie de percurso investigativo para ser acompanhada.

Penso aqui em livros como 10:04, de Ben Lerner, e How Should a Person Be?, de Sheila Heti, ambos ainda sem tradução no Brasil, nos quais os personagens são os próprios autores e quem escreve a história se relaciona com a arte que faz parte da história. Há uma espécie de transgressão na forma, gerada pela presença de quem escreve, se desenvolve, hesita e avança ao mesmo tempo enquanto personagem, autor e sujeito. É como se os autores estivessem aprendendo a viver junto com o leitor por meio de uma dinâmica em que o texto se alimenta da relação com as obras de arte que os autores visitam, interagem, criticam ou ajudam a criar.

Sheila Heti, Margoux Williamson, Sholem Krishtalka e Ryan Kamstra em recriação de Le déjeuner sur l'herb, de ManetLee Towndrow

Sheila Heti, Margoux Williamson, Sholem Krishtalka e Ryan Kamstra em recriação de Le déjeuner sur l’herb, de Manet

10:04 é narrado principalmente em primeira pessoa por Ben, escritor de 33 residente em Nova York, após uma excelente repercussão de seu primeiro romance. Na história que lemos, ele publica o trecho de um possível futuro livro na New Yorker, o que desperta o interesse de editoras que querem que ele finalize e publique o livro. Parte de 10:04 é escrito em terceira pessoa, em situações que repetem e dão continuidade ao que Ben acabou de viver, simulando o livro que ele estaria escrevendo.

Ben eventualmente sai com uma artista chamada Alena, que, junto a um amigo com formação em direito, Peter, tem um projeto que consiste em persuadir uma seguradora a doar parte da sua gigantesca quantidade de “totaled art”. O termo se refere a obras de arte danificadas ou inacabadas, de recuperação supostamente impraticável, e que teriam se convertido de algo muito valioso para algo sem valor nenhum. Ao invés de serem destruídas, as obras são armazenadas em um casarão em Long Island. Alena e Peter querem adquirir uma grande quantidade de obras, na intenção de montar um “Totaled Art Institute”.

Ben se põe diante de várias das obras avariadas que Alena conseguiu adquirir de graça e com frete pago pela seguradora. Entre as obras, o tão famoso quanto polêmico Ballon Dog de Jeff Koons, componente da série Celebration, produzida em 1994, e que chegou a ser avaliado em US$ 58,4 milhões. Todas as obras ali têm seu valor de arte transfigurado ao contrário. O balão de Jeff Koons está em pedaços nas mãos de Ben. Mas o mais interessante é que muitas das peças sequer estão quebradas, não há uma mudança material clara. “Eram a mesma coisa, só que totalmente diferentes. Era a situação inversa da recontextualização dos objetos associada a Marcel Duchamp, ainda que, infelizmente, na minha opinião, isso fosse o espírito tutelar do mundo da arte. Isso era o oposto do ready made.”

Enquanto o ready made consistia transformar objetos comuns (urinol, roda de bicicleta, pá), de escala industrial, em obras de arte, o projeto de Alena consistia em tornar obras de arte de volta em objetos comuns. Através da quebra das obras e da possibilidade de tocá-las, o que acontece é uma quebra de tabu, funcionando quase como uma quebra de premissa da própria arte de ser idolatrada.

Reflexões semelhantes a essa aparecem em How Should a person Be?, de Sheila Heti. No livro da canadense, o ambiente também é metanarrativo e se preocupa com a formação de Sheila como autora. Os personagens são todos inspirados no seu círculo de amigos em Toronto. A personagem Misha é baseada na escritora Misha Glouberman, que já trabalhou com Heti; Sholem é baseado em Sholem Krishtalka, que já apareceu em dos filmes da artista Margaux Williamson. Margaux, a grande amiga de Sheila em How should a person be?, é baseada nesta última. No livro, Margaux pinta os retratos da escritora, que por sua vez grava as conversas delas para transformá-las nos diálogos do seu livro. Vale a pena aqui citar o seguinte trecho: “Fazemos tudo que podemos para que a outra se sinta famosa. Com isso, eu deveria me contentar em ser famosa para três ou quatro amigos meus. Ainda assim, é uma ilusão. Eles gostam de mim por quem eu sou, e eu preferiria que gostassem de mim por quem aparento ser, assim como preferiria que quem aparento ser fosse quem eu sou.”

Na autoficção respinga algo dessa transfiguração ao contrário, numa espécie de work in progress que exala certa vulnerabilidade entre o autor e a narrativa. É como se, ao quebrar a distância entre autor e narrador, típica da narrativa literária mais tradicional, o valor de obra de arte inicial se perdesse. Com essa quebra ainda é possível se olhar como não pertencendo àquele mundo, mas outras possibilidades de olhar também se abrem, favorecendo a criação de novos valores. O interessante disso é que a imperfeição, o work in progress no sentido de obra aberta, quebra a distância intrínseca da obra de arte em seu sentido de objeto simbólico artístico. É quase como se a posse (ou a intimidade?) passasse do artista para todo mundo que entender o valor da coisa nova.

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