Um céu tomado por corpos

Literatura

18.07.12

É bem provável que ninguém se lembre disso, mas participei há poucos dias de um bate-papo na Flip cujo tema foi “Escritas da finitude”. Éramos eu, Carlos de Brito e Mello e Altair Martins. Como estava terrivelmente nervoso, não me lembro direito da conversa que tivemos na Tenda dos Autores. A coisa adquiriu uma característica alucinatória na minha cabeça, sendo arquivada na mesma prateleira em que se encontram a noite em que perdi a virgindade, o lançamento do meu livro de estreia e a primeira vez em que assisti a um show do Radiohead. (Pensando bem, todas essas ocasiões têm em comum um caráter, digamos, defloratório.)

Sei que houve quem gostou do bate-papo na Flip, tanto que li algumas matérias jornalísticas elogiando o modo como abordamos um tema pesado de forma bem humorada, quase fanfarrona. Segundo testemunhos mais ou menos confiáveis, estivemos a ponto de dançar sobre o palco enquanto o mediador, o simpaticíssimo João Cezar de Castro Rocha, entoava Always look on the bright side of life, bela canção que encerra A Vida de Brian, filme dos mais sérios, do tipo que deveria ser exibido em escolas.

Quando me disseram que o tema da conversa seria a morte e as formas como eu e os outros dois autores convidados a abordamos literariamente, abri um sorriso bobo. Não só pelo fato de o meu romance mais recente, Dentes negros, ter a pretensão de ensejar um passeio pela tal finitude, mas também porque a minha própria relação com a escrita é contaminada e animada por uma espécie de consciência da transitoriedade.

Dizendo de outra forma, e correndo o risco de incorrer num chavão, de repetir algo que muitos já afirmaram a reafirmaram, escrevo porque sei que vou morrer e para que tenha o que fazer enquanto isso não ocorre. Simples assim. A vida seria muito chata se eu não nos mantivéssemos ocupados enquanto nos esfarelamos. Calhou de eu me ocupar lendo e escrevendo.

Anos atrás rascunhei uma história em que as pessoas morriam e seus corpos flutuavam. Seus corpos, não suas “almas” ou “espíritos”. Por exemplo: um sujeito era trucidado a tiros e, em vez de se estatelar no chão, literalmente ascendia ao céu. Ou seja, ninguém mais era enterrado. Não era possível. Os vivos olhavam para cima e só viam os mortos flutuando. Não havia uma explicação para isso. Narrava-se, apenas.

Pense num céu tomado por corpos. A menina saindo para a escola, olhando para cima e reconhecendo o vestido amarelo que a avó usava no dia em que teve um ataque cardíaco, morreu e, bem, subiu. Corpos no lugar das nuvens. Céu eternamente nublado. Os nossos mortos lá em cima, fitando-nos vaziamente para todo o sempre. Os corpos não se putrefaziam.

Não lembro como tal ideia me ocorreu, se tive um pesadelo, fiz um chiste ou o quê. Sei que já estava enamorado por histórias apocalípticas e, mais importante do que isso, tateava à procura de uma narrativa que não transcendesse a nossa fisicalidade. Para mim, a literatura é como a vida, isto é, começa e termina em nossa experiência corpórea, carnal – em nossa bendita finitude.

Aluno de colégio católico e filho de kardecistas, esforcei-me desde cedo para me tornar um clichê freudiano, ou seja, rejeitei furiosa e sistematicamente toda e qualquer metafísica, de cunho religioso ou não. Contra o ideal de uma vida eterna, fosse animada pelo fogo do inferno ou acachapada pela pasmaceira do paraíso, fosse enquadrada por reencarnações sucessivas tencionando uma suposta evolução espiritual (sic), optei por abraçar a entropia e me ater à transitoriedade da carne, flanar por aí com plena consciência de que a minha carcaça tem data de validade, que pode inclusive ser abreviada a qualquer momento (mania que tenho de atravessar a Sumaré fora da faixa de pedestres, por exemplo, e de esquecer o broncodilatador em casa).

Tentei compartilhar essa minha visão com o público que gentilmente assistiu àquela conversa em Paraty. Mais do que isso, fiz o possível para despregá-la de uma qualquer morbidez e desse niilismo rasteiro que grassa por aí. A ideia, não custa reiterar, é fazer algo de que gostamos enquanto não somos desconectados de vez e condenados a flutuar no vazio, fitando o nada. No meu caso, é a literatura. Falando nisso, talvez esteja na hora de retomar aquela história.

* Na imagem que ilustra a home deste post: a fotografia “Cadeiras de Paris”, de André Kertesz

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