José Carlos Avellar (1936-2016)

José Carlos Avellar (1936-2016)

Um crítico em meio ao todo

Cinema

21.03.17

Tome-se aleatoriamente um ensaio de José Carlos Avellar e será possível detectar muitas das características de seu pensamento e ofício. Mesmo um texto para uso didático na Escola de Cinema Darcy Ribeiro, onde lecionou, aponta métodos e traz significativas contribuições à reflexão. No caso, Avellar relembra o debate entre Júlio Bressane e Ruy Guerra em que foi levantada a hipótese de se plagiar um filme que ainda não tenha sido feito. Constrói, a partir da conversa, uma rica relação entre o neorrealismo italiano e o cinema da América Latina, discutindo se o que estava no ar aqui pode ter caído primeiro na Itália e favorecido um plágio do que os latino-americanos iriam fazer 15 anos mais tarde. Trata-se de contexto, afinal, que foi razão e empenho de Avellar em diversas frentes.

A análise crítica, seja relativa a um período cinematográfico, seja específica a um filme, era uma delas. Era frequente o crítico adotar o registro pontual para chegar ao mais amplo. Afrontava seu tema não numa análise fechada em si, mas em variado “diálogo” com textos e entrevistas de pares teóricos e realizadores. Avellar fazia ecoar, assim, pontos de vista convergentes ou divergentes a uma tese. É uma característica notada também por quem conviveu com ele em outras atividades, como o de gestor cultural, curador e representante do cinema brasileiro para a programação de festivais internacionais. “Ele foi fundamental para aproximar o cinema latino-americano mesmo de nós, mexicanos, quando esteve ligado ao Festival de Guadalajara”, lembra o produtor Jorge Sánchez.

Atual diretor do Instituto Mexicano de Cinematografia, Sánchez liderou o Festival de Guadalajara entre 2006 e 2010 e foi amigo e interlocutor constante de Avellar. Em fevereiro último, participou de uma homenagem ao colega. O ato foi organizado pelo Instituto Ibero-Americano em parceria com o Instituto Cervantes, ambos em Berlim, e realizado na semana da Berlinale, outro dos festivais de cinema que contava com Avellar na indicação de filmes brasileiros. Na mesa, também estavam Manoel Rangel, presidente da Ancine, e a viúva Cláudia Duarte. Na plateia, admiradores e amigos, entre eles nomes do cinema nacional, como o diretor Eduardo Escorel.

A abordagem à memória de Avellar revelou pontos em comum que não se deve à casualidade. Cláudia pinçou um fragmento da fortuna crítica do pensador a respeito de sua recorrente proposta em entender a função e os procedimentos do filme em captar a realidade. A questão documental era pedra de toque no pensamento do autor e invadia outras formas artísticas, como a pintura, por exemplo. Está na origem de suas conversas, por vezes relatadas de modo informal, por vezes em entrevistas editadas, com cineastas como Eduardo Coutinho. Com os realizadores, gostava de dissecar o princípio e o meio do trabalho documental.

Além da fronteira nacional, a dedicação de Avellar aos diretores latino-americanos converge para o que Sánchez destacou como empenho pela aproximação do cinema dessas nações. Para ele, o amigo pensava a produção em sua totalidade, no viés artístico, estético, mas também em sua viabilidade como produção e comercialização. “Preocupava-se com as novas formas de difusão.” Fazia isso também ao integrar júris de seleção para projetos, como o citado por Sánchez no México e na Colômbia. Sobretudo, seguiu Sánchez, amava falar dos filmes e tinha uma paixão especial por Eisenstein, “o diretor que inovou a forma do cinema, o deslocamento da câmera”.

No texto já referido acima, o cineasta russo é citado, e raras são as reflexões em que Avellar não busque relação com ele. O professor chama a atenção dos alunos aludindo a clássicos de Eisenstein, Greve Encouraçado Potemkin, para lembrar como foram recebidos na época: “Encenações realistas, quase documentários, imagens de uma autenticidade até então desconhecida”. Basta recorrer a seus textos escritos neste mesmo Blog do IMS, ou no seu site pessoal e em tantos outros veículos para confirmar a predileção.

Esse procedimento singular de análise foi sendo estabelecido e aperfeiçoado aos poucos, aponta Eduardo Escorel. Ele privilegia, sobretudo, o profissional do pensamento crítico. “No Brasil, Avellar foi um dos críticos que talvez tenha criado um método de análise dos mais pessoais, ao escolher uma cena e a partir dela buscar uma compreensão geral do filme; isso era muito peculiar, sua marca”. Ambos se conheceram na redação do Jornal do Brasil no final dos anos 1960, quando Avellar era diagramador da Primeira Página. Já escrevia sobre cinema, mas ainda sem o reconhecimento que viria a ter, e editava um espaço dedicado às estreias.

Em outra de suas qualidades, abriria espaço para o montador e diretor Escorel se iniciar na crítica de cinema. Este estrearia não com um filme qualquer. “Foi um convite para apresentar O dragão da maldade contra o santo guerreiro“, lembra. A parceria viria a se fortalecer nas páginas da revista Cinemais, que Avellar fundou com Carlos Alberto Mattos. A relação também se aprofundaria nas atividades de gestor de Avellar, como na Cinemateca do MAM e na Embrafilme, em meados dos anos 1980. Sob a direção de Carlos Augusto Calil, Escorel era diretor de operações, enquanto Avellar cuidava da área cultural. “Ele tinha uma habilidade muito grande de lidar com as demandas dos realizadores, que como sabemos podem ser inconvenientes”.

Não seria arbitrário afirmar que esse e outros méritos se justificam também por Avellar ter praticado o cinema, em exercícios na direção e na codireção (Treiler, Viver é uma festa), na fotografia (Manhã cinzenta), na produção (Passe livre) e na montagem (Iaô). Mais uma vez, o texto, que poderia sugerir uma trivial atividade em classe, destaca em uma citação uma expressão a calhar para a própria trajetória de Avellar. Em conversa com o diretor argentino Fernando Birri, o escritor italiano Vasco Pratolini, tão afinado ao momento neorrealista, aponta que sua geração desejava não estar à frente dos demais integrantes dela, mas sim “buttati nella mischia“. Estar misturado aos demais, em meio aos seus, seria para ele a alma da atitude neorrealista, como também parece ter sido para Avellar.

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