Um homem se retira

Colunistas

17.12.14

Não sou a pessoa certa para escrever este texto. Não entendo nada de poesia. Quer dizer, posso entender que um poema seja péssimo, sem que ninguém precise me explicar nada, ou, por razões que não entendo, posso entender que um poema seja maravilhoso, também sem a necessidade de nenhuma explicação. Mas não entendo praticamente nada entre uma coisa e outra, entre os dois extremos, entre o péssimo e o maravilhoso, que é onde se situa a maioria dos poemas escritos no mundo, muitos deles os mais decentes e honrosos.

Mark Strand (1934 – 2014)

Entendo que Mark Strand escreveu alguns poemas maravilhosos. A meu favor, um deles diz alguma coisa como: “Se um homem entende um poema,/vai ter problemas” (“If a man understands a poem,/he shall have troubles.”, em The new poetry handbook). Strand morreu há duas semanas, aos 80 anos, em Nova York. Recebeu o título de Poeta Laureado dos Estados Unidos, em 1990, e o prêmio Pulitzer por Blizzard of One, em 1999. Em meados dos anos 1960, passou um ano no Brasil, onde conviveu com Elizabeth Bishop e Lota de Macedo Soares, entre outros. Traduziu Drummond. Publicou uma dúzia de livros que foram enfim reunidos em um único volume meses antes de sua morte (Collected Poems, Knopf, 2014).

Entre suas coletâneas, Reasons for moving (1968) é certamente a mais marcada pela temporada brasileira. Um dos poemas fala de um Rio debaixo de chuva, em 1966, e da despedida de uma cidade negra, escura, afundando na própria cova. Há referências a favela e samba, ao Cristo coberto de nuvens sob raios e ao “parque de Lota” (o Aterro do Flamengo). Um poema é escrito à maneira de Drummond, outro é dedicado a Décio de Souza, psiquiatra de Lota e amigo do poeta. E quando falam de Minas, os versos de Strand mais parecem a descrição de um quadro de Guignard. Mas é “Keeping things whole”, poema de onde saiu o título da coletânea, que mais diz sobre a potência do legado desse poeta elegante e discreto num mundo descaradamente narcisista como o nosso.

Vai aqui uma tradução apressada (para quem se interessar pelo original, o poema está na antologia publicada pela Knopf):

Mantendo as Coisas Plenas

Num campo
Sou a ausência
de campo.
É sempre assim.
Onde quer
que eu esteja
sou o que falta.

Quando ando
separo o ar
e o ar
sempre volta
para preencher o espaço
onde meu corpo esteve.

Todos temos razões
para andar.
Eu ando
pra manter as coisas plenas.

Por menos que eu entenda de poesia, dá para perceber que os poemas de Strand falam de extinção, do desaparecimento do eu. Há títulos como “Abrir mão de mim”, “Minha vida por outra pessoa” e “Quase invisível”. Falar da morte (ou do desaparecimento do eu) pode soar ridículo num mundo cujo narcisismo fantasmagórico resume tudo a aparecer e a reproduzir aparições do eu por todos os lados e por todos os meios possíveis (de blogs pessoais a contas de Facebook, selfies e Instagram). Ninguém quer desaparecer, é claro. A discrição e a elegância dos poemas de Strand, entretanto, só falam de se retirar, de se subtrair, de sumir. São formas anacrônicas, cada vez mais raras, idiossincráticas e incompreensíveis de estar no mundo e de tornar o mundo prenhe.

Strand fala de um mundo que ainda supõe a integridade, formado por homens cuja presença, por ser real, supõe também o desaparecimento. E é interessante que a integridade aí esteja associada ao desaparecimento. O eu do poema está disposto a se mover (e a desaparecer) para manter as coisas plenas (ou íntegras – outra tradução possível para “whole”). Sua ausência só o torna ainda mais presente, como prova a própria poesia de Strand. É do movimento e do apagamento que ele tira sua força e sua potência. É o contrário de um mundo de fantasmas infantilizados que, fascinados pela própria imagem e desesperados diante da perspectiva inevitável do desaparecimento, insistem em reproduzir e replicar o vazio imóvel, impotente e histérico da sua aparência. 

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