Um Leminski cheio de graça

Literatura

01.04.13

O livro Toda poesia (Companhia das Letras, 2013), de Paulo Leminski, é menos completo do que se imagina: ele contém a poesia que o poeta paranaense escreveu, mas algumas “imagens” que acompanhavam seus versos foram eliminadas sumariamente. Em 1976, Leminski publicou “Quarenta clics em Curitiba”, que abre Toda poesia. Uma nota do editor, porém, avisa que, em sua edição original, o livro “combinava fotos de Jack Pires e poemas de Paulo Leminski. Conforme diz Leminski na introdução da obra, ?Nenhum texto foi escrito para uma foto. Foi buscada a relação/contradição texto/foto. Os poemas estavam prontos já.’ Dado que os poemas são anteriores às fotos, optamos por reproduzir aqui apenas os textos, sem as imagens”.

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Toda Poesia, de Paulo Leminski (1944-1989), lançamento da Companhia das Letras

Confesso que essa opção de excluir as imagens me incomodou. Acredito que se possa entendê-la como uma tentativa deliberada de “limpar” a poesia de Leminski de companhias visuais “indesejáveis”, a fim de apresentá-la ao leitor de hoje mais “arejada”, reduzida ao verbo de fácil comunicação. A relação/contradição entre texto/foto, buscada pelo autor, poderia pôr em xeque a suposta linguagem fácil da sua poesia, um lugar-comum da crítica. Senti, acima de tudo, que por meio desse ato de exclusão, que me ocultou algo do contexto cultural curitibano desse livro inaugural de Paulo Leminski, poderia estar em curso uma tentativa de limpeza “estética” inacreditável. Cheguei até a me perguntar se o editor não estaria tentando transformar Leminski num poeta mais paulistano (logo nacional) do que curitibano…

Para complicar as coisas, há outro livro do Leminski que originalmente também foi publicado com imagens, as quais, previsivelmente, desapareceram de Toda poesia. Trata-se de Winterverno, obra póstuma de 2001. A nota do editor diz: “Winterverno foi publicado em 2001 pela editora Iluminuras, na forma de um ?álbum’, em que dialogavam poemas de Paulo Leminski e desenhos de João Suplicy. Optamos por manter somente os poemas, sem imagens, e apenas os que ainda não haviam aparecido em livros anteriores do autor”.

O verbo “optamos” não explica nada, apenas enfatiza a decisão de eliminar (palavra terrível, como sabemos) rastros de terceiros na obra de Leminski. Talvez o leitor merecesse ver uma ou outra imagem, mas isso não vem ao caso agora. O volume Toda poesia talvez contenha, a despeito disso, toda a produção do poeta morto em 1989, numa edição despretensiosa que não poupa curiosamente o autoelogio, embora não tenha sabido, ou podido, reproduzir exatamente as imagens (sobretudo estas) do primeiro livro de Leminski: “Esta edição reúne pela primeira vez toda a poesia já publicada do autor curitibano, mestre do verso lapidar e da astúcia. Livros hoje clássicos como Caprichos e relaxos, Distraídos venceremos e La vie en close, além de títulos raros como Quarenta clics em Curitiba, estão agora novamente à disposição dos leitores com inédito apuro editorial”.

Questionei acima esse suposto “inédito apuro editorial” alardeado no texto da quarta capa. Passo agora à poesia de Paulo Leminski, ou melhor, a toda a poesia de Leminski. Li o livro com prazer, e esse prazer foi aumentando à medida que me deparava com as preces – com as muitas preces — que o poeta escreveu. Afirmaria que a prece é uma das formas poéticas favoritas do autor. Esse aspecto “religioso” da poesia de Leminski é um dos traços marcantes dos seus escritos, e é sobre isso que desejo falar. É claro que eu poderia destacar outros aspectos igualmente marcantes dessa poesia, mas a minha leitura me fez acompanhar a sucessão de preces, ou orações. Nos breves comentários que fecham o volume, assinados por José Miguel Wisnik, Haroldo de Campos, Caetano Veloso, Leyla Perrone-Moisés, o próprio Paulo Leminski, Alice Ruiz S e Wilson Bueno, não se destaca esse lado da sua produção, talvez porque é óbvio ou visível demais. Apenas Alice Ruiz S fala em “seu compromisso com a religiosidade” e em “poesia como um ato de fé”.

Começarei citando os esplendores da luz (ou do êxtase) na poesia de Paulo Leminski. Um de seus melhores poemas é sem dúvida este (sem título) que citarei na íntegra, incluído na seção “Poemas esparsos”, que contém, segundo nota (ambígua, como sempre) do editor, “textos praticamente inéditos”. Ou seja, não são nada inéditos. Mas deixando essas imprecisões de lado, eis os versos extáticos:

"acenda a lâmpada às seis horas da tarde
 acenda a luz dos lampiões
 inflame
            a chama dos salões
            fogos de línguas de dragões
            vaga-lumes

numa nuvem de poeira de neon
tudo é claro
                   tudo é claro
                   a noite assim que é bom

a luz acesa na janela lá de casa
o fogo
            o fogo lá no beco
                                         e o farol

esta noite vai ter sol"

José Miguel Wisnik explica que esse poema foi musicado por Leminski e que sob o título “Luzes” acabou, muito posteriormente, gravado pela cantora Suzana Salles e depois por Arnaldo Antunes. Realmente, fiquei interessado em ouvir a canção original de Leminski, pois deve revelar muito da sua concepção de prece cantada, de êxtase compartilhado por meio de uma linguagem de matiz religioso. A “versão country” de Arnaldo Antunes, considerada vigorosa por Wisnik, não me pareceu muito interessante, mas ainda não tive a oportunidade de ouvi-la. Contudo, reconheço que alusões a lampiões e vaga-lumes no poema trazem à tona um mundo rural… Tomara que no futuro um cantor ou uma cantora grave as preces pós-modernas de Leminski recheando um CD só com elas…

A palavra “prece”, aliás, é utilizada explicitamente por Leminski em “Poemas esparsos”:

"deus
         algum
                   indu
                           ogum
                                     vishnu                          
precisa
            da tua prece

tua pressa
                pessoa
só teu pulso
                   acelera

você padece
padecer
             te resta


tudo
       um belo dia
                         desaparece"

Temos aí os deuses de várias latitudes do planeta, a palavra dirigida a esses deuses infinitos (palavra eficaz ou não), a vida, o padecimento, o fim (a tirada supostamente irônica é a expressão desse fim), ou seja, todo um universo que subjaz às muitas outras “preces” do poeta curitibano que o leitor encontrará no volume. No livro Winterverno, de 2001, encontrei esta “Ave Maria” animista vazada num formato que lembra o da canção popular e que evoca pelo menos “Garota de Ipanema”, sem deixar de se aproximar também do haiku, poema breve que Leminski adotou:

   "ave vento       
    cheio de graça
    ave
tudo o que passa"

A referência ao haiku talvez possa ser melhor compreendida se eu citar mais um poema breve do autor, talvez um dos seus poemas mais japoneses, mas certamente não o melhor. Até mesmo uma leitura distraída de Leminski revela o quanto o poeta está próximo de mestres zen-budistas, como, por exemplo, Bashô. Não estou querendo insinuar que todo haiku, ou “haikai”, como se diz no Brasil, é um texto budista, o que não é verdade. Os três versos dizem:

  "viver é superdifícil
o mais fundo
    está sempre na superfície"

Pode-se compreender, a partir desse poema, algo do que Leminski disse em sua “Ave Maria” animista, citada acima. A superfície é o sopro e é, também, entre outras referências verbo-visuais, a poesia concreta, que influenciou em muitos aspectos seus versos. Em meio às muitas (e às vezes sutis) orações de Leminski, o leitor se depara com “piadinhas” de gosto duvidoso, como a que cito agora, a qual consta do mesmo livro:

  "acordei e me olhei no espelho
ainda a tempo de ver
   meu sonho virar pesadelo"

A verdade é que a prece, em Toda poesia, também pode ter algo de piada, e a piada, algo de prece, criando-se um universo poético muito próprio em que os contrários miticamente se tocam sem chegar, contudo, a qualquer síntese — utopia que Leminski talvez não buscasse, pois a sabia impossível. Daí a importância de um poema como este (seu título é “Sacro lavoro”), que integra O ex-estranho, livro de 1996:

  "as mãos que escrevem isto
um dia iam ser de sacerdote
    transformando o pão e o vinho forte
na carne e sangue de cristo

    hoje transformam palavras
num misto entre o óbvio e o nunca visto"

O “nunca visto” é, parece-me, o fato inusitado de que “esta noite vai ter sol”, enquanto o “óbvio” é repetir que “tudo um belo dia desaparece”. Mas é também a notícia, que me chegou ontem, de que este livro que brevemente comentei, Toda poesia, cruzou as “nuvens de equívocos” que cercam a recepção de Leminski e tornou-se, na área da poesia brasileira, um merecido “best seller”. É possível também afirmar que a já denunciada eliminação das imagens, que conferiu ao texto uma uniformidade que originalmente ele não tinha, está dando bom retorno comercial.

Sérgio Medeiros é tradutor, escritor e poeta. Publicou “Totens” (Iluminuras, 2012), entre outros livros.

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