O diretor Marcelo Gomes

O diretor Marcelo Gomes

Um país malvado

No cinema

14.04.17

“O Brasil é um país malvado”, disse o exibidor Adhemar de Oliveira durante um debate sobre Aquarius em São Paulo, há um ano. Dois novos filmes permitem entender – e comprovar – essa frase terrível: o documentário Martírio, de Vincent Carelli, e a ficção Joaquim, de Marcelo Gomes.

O primeiro, de quase três horas, é a pungente crônica da luta inglória dos Guarani-Kaiowá pela retomada de suas aldeias e territórios sagrados. Por extensão, é um retrato da destruição sistemática dos povos indígenas por um modelo sócio-econômico predatório e cruel. Com sua abundante documentação e seu engajamento veemente, é um filme que se justifica mais pela urgência política e pela dimensão humana do que propriamente por sua construção cinematográfica.

Escrevi brevemente sobre ele por aqui quando foi exibido com grande impacto no festival de Brasília do ano passado.

Tiradentes sem aura

A coprodução luso-brasileira Joaquim, por sua vez, é uma abordagem fecunda e original da figura de Tiradentes. Ao abordar o personagem antes da sua atuação na chamada Inconfidência Mineira, Marcelo Gomes realiza uma dupla operação: por um lado, humaniza-o, despindo-o (desde o título) da aura mítico-histórica que lhe foi conferida ao longo dos séculos; por outro, insere-o na complexa tapeçaria de uma sociedade em formação.

Vivido pelo ator Júlio Machado, o alferes Tiradentes do filme é hesitante e contraditório: impetuoso e obtuso, ingênuo e calculista, generoso e brutal – demasiado humano, em suma. Do mesmo modo, o mundo social à sua volta é incerto e movediço: a mulher negra de quem ele se enamora (Isabél Zuaa) é escrava de um negro liberto; seus superiores no exército manipulam seu ímpeto e sua ambição para que descubra ouro nos sertões e combata o contrabando; um amigo poeta (Eduardo Moreira) lhe instila ideias libertárias vindas da América do Norte e da França.

Diferentemente de um clássico como Os inconfidentes (1972), de Joaquim Pedro de Andrade, que perscrutava o ideário e as intrigas dos conspiradores e que se ambientava em casarões, palácios e igrejas barrocas, ou de uma semichanchada como Xica da Silva (1976), de Cacá Diegues, que carnavalizava e edulcorava um tanto as relações entre senhores e escravos, Joaquim se debruça sobre uma paisagem física e humana muito mais selvagem: matas fechadas, desfiladeiros, barracos militares, senzalas, grutas, quilombos, gente rude, de piolhos nos cabelos, roupas rasgadas e dentes podres.

Também o tratamento cinematográfico é radicalmente distinto. Em vez da elegância dos enquadramentos, da dramaturgia clássica e da dicção elevada, há aqui uma instabilidade deliberada: uma câmera na mão que acompanha a irregularidade da topografia mineira, uma vibrátil oscilação de luz, uma ampla variedade de línguas, registros e sotaques (português lusitano e “brasileiro”, idiomas africanos e indígenas), tendendo a uma brusca coloquialidade, quando não aos grunhidos e onomatopeias.

Civilização embrionária

Cria-se assim uma atmosfera de civilização nascente, embrionária, em que a abertura de possibilidades propiciada pelas terras inexploradas (como num faroeste de desbravadores) é contradita pelas coerções sociais, por um intrincado sistema de opressões: portugueses sobre brasileiros, brancos sobre negros, negros livres sobre negros cativos, oficiais sobre subalternos – e os índios como párias entre párias, escorraçados como mendigos ou explorados como guias de expedições.

Essas fraturas sociais e culturais são apresentadas sem rebuço ou maquiagem, mas também sem simplificação maniqueísta. A negra amada por Joaquim não é simplesmente uma vítima ou um objeto do desejo do branco, mas também uma ardilosa manipuladora e, por fim, senhora feroz do seu destino.

Nesse território traiçoeiro, de lealdades precárias, reina a desconfiança. Mesmo entre Joaquim e o amigo poeta que lhe franqueia as luzes dos pensadores libertários, a relação não é propriamente harmoniosa. No fundo, o alferes sabe que não pertence ao mesmo mundo daqueles senhores que se vestem com rendas e falam francês. Esse descompasso é evidenciado num jantar ao ar livre do protagonista com os intelectuais e clérigos que serão seus futuros companheiros de conspiração.

O único momento em que se esboça uma relação horizontal, de igual para igual, e portanto de não-dominação, é uma cena em que, durante uma expedição em busca de ouro, um negro e um índio, meio embriagados, mostram um ao outro a música e a dança de seu respectivo povo. Falando línguas distintas, comunicando-se por gestos, eles perfazem ali um esboço de fraternidade, um tosco e tocante rascunho de país.

Há ao longo do filme diálogos que, sem deixar de ser historicamente verossímeis, mostram um indisfarçável desejo do diretor de falar, ironicamente, sobre o presente: por exemplo, quando um soldado se nega a dar comida a um menino índio dizendo que “esses vagabundos não querem trabalhar”; ou quando Joaquim, depois de ler o livro de um revolucionário da independência norte-americana, diz que “certamente esse povo que está surgindo na América do Norte jamais vai querer agredir e oprimir outros povos”; ou ainda quando afirma ao amigo poeta que “nesta terra só tem três tipos de gente: bandido, corrupto e vadio”.

Mas é na improvisada dança do índio e do negro à luz do luar que encontramos, a meu ver, a asserção política mais consequente do filme, a utopia sempre adiada de um país solidário e plural.

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