Uma Aida intimista

Música

19.11.15

Desde a sua criação, Aida foi marcada pela exigência, na medida do possível em se tratando de uma ópera, de rigor histórico ou, ao menos, arqueológico. Ela foi encomendada a Giuseppe Verdi por Auguste Mariette, emissário do governador otomano do Egito, para ser encenada no recém-inaugurado Teatro Italiano do Cairo. O francês era um dos maiores egiptólogos de seu tempo e envolveu-se na produção a ponto de desenhar os figurinos e conceber os cenários. Muitas das montagens realizadas desde a estreia, em 1871, foram influenciadas – e às vezes arruinadas – por essa suposta necessidade de realismo de vestuário e de arquitetura.

A montagem que o IMS-RJ exibe em seu cinema na próxima quarta-feira, dia 2 de dezembro, foge das Aidas grandiosas. O diretor Peter Stein desejou encenar – no Teatro alla Scala, entre 15 de fevereiro e 15 de março deste ano – uma Aida intimista, sob a batuta do veterano Zubin Mehta, craque em Aidas, à frente da orquestra e do coro da casa de Milão. Assim, os cenários egípcios de Ferdinand Woegerbauer e os figurinos de Nanà Cecchi são quase, bem, espartanos: geométricos, estilizados, sugestivos mais que descritivos das Mênfis e Tebas no tempo dos faraós. O foco, então, pode passar para o maior triunfo de Verdi nesta ópera que é o ápice de sua fase intermediária: o realismo emocional.

O libreto em quatro atos escrito por Antonio Ghislanzoni, baseado em Camille du Locle e no onipresente Mariette, segue um esquema clássico, que no futuro renderia um poema a Carlos Drummond de Andrade: a princesa egípcia Amneris ama o guerreiro Radamès, que ama a escrava etíope Aida, que serve à princesa… Eis aí o triângulo amoroso que sustenta o drama “histórico”. Porque Aida também ama Radamès, mas é filha de um inimigo, Amonasro, rei dos etíopes. A mando do faraó, Radamès deverá liderar as tropas de Amonasro. Aida ficará dilacerada entre o amor por um homem e o amor pela pátria perdida. Isto, assim como uma princesa que oscila entre ciúme e amor, entre vingança e culpa, permite a Verdi apresentar ao espectador uma requintada paleta de emoções que, humana e realisticamente, se chocam, misturam e confundem.

A ópera foi um sucesso desde a estreia no Cairo, sucesso que se repetiu no começo do ano seguinte, quando Verdi em pessoa regeu a primeira apresentação italiana no Scala. O compositor foi chamado à boca de cena nada menos do que 32 vezes. A escala da montagem pode ser vislumbrada na capa da primeira edição da partitura. Hoje em dia, poder-se-ia dizer que a ilustração é um spoiler: reproduz a derradeira cena, uma cena dupla, na qual a metade superior do cenário reproduz o Templo de Vulcão, no qual irá irromper a desesperada Amneris; e a metade inferior, a catacumba na qual Radamès deverá morrer emparedado por, manipulado pela dilacerada Aida, revelar um segredo militar a Amonasro. O guerreiro, porém, não morrerá só… Aida o aguarda na cripta.

A música é extraordinária, mesmo para os elevados padrões do compositor. Sem nunca ter estado no Egito, ele capturou o clima oriental que se esperava de Aida. “A música egípcia de Verdi é muito convincente e bastante simples”, declarou o maestro Sir Mark Elder à revista Gramophone em 2013, por ocasião do bicentenário de nascimento do compositor. “Os efeitos egípcios estão mais nas melodias, nos melismas (variadas notas que se sucedem sobre uma única sílaba do texto)” Aos 58 anos, depois de décadas de trabalhos árduos, Verdi confiava no próprio taco, se dando ao luxo de “gastar” duas de suas maiores melodias logo na primeira cena do primeiro ato: “Celeste Aida”, ária cantada por Radamès, e “Ritorna vincitor!”, cantada pela personagem-título.

Contudo, se a reação da exigente plateia do Scala à montagem de 2015 fosse mensurável por alguma espécie de “aplaudômetro”, os ótimos intérpretes do casal desafortunado, o tenor italiano Fabio Sartori e a soprano americana Kristin Lewis, perderam para o terceiro vértice dessa, bem, pirâmide amorosa. A meio-soprano georgiana Anita Rachvelishvili recebeu os aplausos mais demorados. Sua arrebatadora interpretação vocal e dramática durante toda a primeira cena do quarto ato, da ária “L’aborrita rivale a me sfuggia” em diante, já seria suficiente para a deferência.

, ,