Vamos falar de sexo?

Cinema

24.05.13
"La vie d'Adèle", Abdellatif Kechiche (2013)
“La vie d’Adèle”, Abdellatif Kechiche (2013)

(Cannes). Sala de aula, escola secundária, lição de literatura francesa. Depois da leitura de algumas páginas de La vie de Marianne, de Marivaux, o professor pergunta: o que seria o vazio no coração a que se refere o autor ?

Um aluno confessa não se sentir nem um pouco atraído por um livro de 600 páginas. Outro julga impossível compreender o que Sartre queria dizer com existencialismo. No recreio ou na saída do colégio, conversas sobre música (hard rock ou blues?), sobre pintura (Picasso? O florido de Klimt ou o sombrio de Schiele?) e principalmente sobre sexo: quem está de olho em quem, quem foi para a cama com quem, quem foi visto num bar gay com quem. O filme, sem esquecer a sala de aula, dedica atenção especial ao que se discute fora da escola. Por isso, de certo modo, é como se retomasse a questão proposta há alguns dias neste mesmo blog por José Geraldo Couto: vamos falar de sexo?

A vida de Adèle – capítulos um e dois (La vie d’Adèle – chapitre 1 et 2), de Abdellatif Kechiche, começa na escola onde a jovem Adèle termina o ginasial especialmente interessada em literatura. Começa numa escola e a ela retorna com frequência: ao jardim de infância e à escola primária em que Adèle, adiante, começa a trabalhar como professora. A sala de aula define o tempo da personagem e também o do filme: fora da escola, em casa, na rua, nas manifestações contra os cortes das verbas para educação, nos bares, nas festas, os estudantes continuam na escola, vivem um romance de formação, um aprendizado sobre os outros e sobre si mesmos. O narrador, de sua parte, conta a vida desses jovens como um professor que na escola propõe questões aos alunos. Questões entre a literatura e a pintura ou entre a literatura (pensar e logo existir?) e o cinema (existir e não tão logo pensar?).

Na escola, a lição de literatura. Quase somente primeiros planos dos alunos e do professor. Em casa, à mesa, o espaguete à bolonhesa, igualmente quase somente primeiros planos. Na porta da escola, os rapazes interessados nas moças e elas nos rapazes, mais primeiros planos. Grande parte desse filme longo (cerca de três horas) e muito falado é feita dos rostos dos personagens e quase nenhum plano mais aberto sobre o cenário em que eles agem. Mas quando finalmente a imagem se abre sobre os corpos de Adèle e de Léa é como se não existisse mais nada, como se nesses planos abertos sobre os corpos continuássemos diante de primeiros planos. Uma longa cena de sexo, uma escultura em movimento, segundo a definição do diretor, e não apenas uma. Outra e outras mais, todas com uma luz suave e nenhuma sombra para ocultar o que quer que seja.

“Demoramos muito para encontrar a luz que desejávamos”, esclarece Abdellatif, “queria uma imagem como a de uma pintura, a de uma escultura, mostrar que as duas são verdeiramente belas. Depois, a coreografia, o gestual amoroso, tudo se fez por si mesmo, com naturalidade. Discutimos muito, mas no fim das contas as discussões não serviram para nada. Falamos muito num set de filmagem, mas o que se diz não tem importância porque é tudo bastante intelectualizado e a vida, na realidade, é mais intuitiva”.

"La vie d'Adèle", Abdellatif Kechiche (2013)
“La vie d’Adèle”, Abdellatif Kechiche (2013)

A vida de Adèle – capítulos um e dois nasceu em parte de um antigo projeto não realizado: a história de uma professora, uma personagem apaixonada pelo trabalho e determinada a enfrentar as repercussões de sua vida pessoal, “quer dizer, em seus amores, seus sofrimentos e suas rupturas, de modo que não interferissem em sua vocação para o ensino”. E nasceu também de uma história em quadrinhos, Le Bleu est une couleur chaude (O azul é uma cor quente), de Julie March, que ao mesmo tempo despertou a lembrança do projeto não realizado e mostrou a ele a história que deveria contar.

“Não é uma história de homossexualidade. Não tentei discutir a questão, durante a realização jamais me coloquei a questão ‘são duas mulheres’. Ela pode surgir depois do filme pronto, mas não pensei nisso enquanto o realizava. Bem presente na minha cabeça estava o desejo de contar a história de um casal de amantes. Uma história de amor como qualquer outra, a beleza de todas elas e o não saber por que elas acontecem”. Ele, por exemplo, não sabe ao certo por que se apaixonou por Le Bleu est une couleur chaude. “De onde veio a inspiração para adaptar os quadrinhos? Dos desenhos dos corpos nus? É possível. Não tenho muito claros os motivos que me levaram a esse filme”.

Claro, uma vez tomada a decisão de filmar, estava a escolha de Léa Seydoux para uma das personagens – “ela tinha a beleza, a voz e a inteligência da personagem, e me conquistou sobretudo por seu modo de ver o mundo, sua consciência social”. Já o encontro da outra protagonista, depois de uma longa série de testes, se deve a uma escolha menos consciente.

“Escolhi Adèle Exarchoupoulos no momento em que a vi, num encontro num café. A boca, talvez. Ela comia uma torta de limão e eu me dizia ‘é ela’. Algo na modo de mover os lábios. Não sei, somos tocados por alguma coisa no rosto de uma pessoa, os olhos, o nariz, nela foi a boca”. A boca e também a sonoridade do nome da atriz, adotado como o nome da personagem, “para compor uma afinidade sonora e misturar as coisas, nomes das atrizes e das personagens Adèle vive Adèle, Léa vive Emma, três nomes suaves”. A boca e também o significado do nome em árabe: “Adèle em árabe significa justiça”, lembra Abdellatif. De qualquer modo, as escolhas em A vida de Adèle resultam mais da intuição, de um saber que não se sabe como, que de uma decisão consciente. Nesse sentido, a escolha do subtítulo, capitulos um e dois, não é necessariamente uma indicação de uma sequência do filme, com capitulos três e quatro. É de certo modo uma quase referência ao livro de Marivaux citado numa das primeiras cenas, pois La vie de Marianne é um romance inacabado. Não sabemos a continuação da história. No filme, o inacabado é um convite para seguir agindo guiado pela intuição, intuir o que acontecerá com a personagem. “Capitulos um e dois porque não conheço os outros capítulos e não sei se um dia Adèle vai me contar o que se passou depois”, conclui Adellatif.

Exibido na quinta e na sexta-feira, A vida de Adèle – capítulos um e dois foi talvez o primeiro entre os filmes da competição de Cannes recebido com um duplo entusiasmo pela muita gente do festival: um entusiasmo pela coreografia propriamemte cinematográfica, outro mais pela coreografia sensual nas cenas de erotismo, que propõem de modo direto e natural: vamos falar de sexo?

PS (escrito após a vitória de A vida de Adèle): A boa acolhida ao filme de Abdellatif Kechiche na primeira sessão de Cannes, reservada aos profissionais da imprensa, confirmou-se adiante com o prêmio da crítica internacional e com a Palma de Ouro. Raros filmes acumularam em Cannes o prêmio da Fipresci e o do júri oficial. Provável que recepção igualmente favorável seja repetida na estreia de A vida de Adèle – capítulos um e dois em salas comerciais daqui a pouco na França (ainda em meio à repercussão dos prêmios em Cannes e às manifestações em grande parte contrárias à lei que legaliza o casamento entre pessoas do mesmo sexo em Paris). Recepção semelhante deverá ocorrer ainda, quando o filme chegar aos cinemas brasileiros. Provável igualmente que ver A vida de Adèle nas salas comerciais, ou apanhar o que ficou do filme na memória depois do festival, signifique concentrar a discussão na quase meia hora da cena de sexo entre Emma e Adèle. A primeira delas. Nenhum exagero dizer que o filme se faz em torno desta cena. Não porque o resto não tenha importância ou seja um mero acessório ou moldura para o balé erótico das atrizes. A cena é central pelo que significa dentro da história de Adèle, pela decisão de estendê-la por longo tempo, pelo trabalho das intérpretes, pela sensualidade do colorido e do desenho do quadro e principalmente – a questão surge só algum tempo depois da projeção – pela possibilidade de discutir o quanto esta cena de A vida de Adèle representa algo essencialmente feminino e o quanto projeta uma fantasia masculina – uma fantasia ou um fantasma masculino. De qualquer modo, o fato de ela exigir uma espécie de distanciamento, um certo afastamento da escultura em movimento, de acordo com as palavras do diretor, para ser convenientemente interpretada, reafirma o tema proposto num dos primeiros diálogos sobre as ideais discutidas aqui e ali em livros complicados de ler porque têm mais 600 páginas: pensar e logo existir ou existir e não tão logo pensar?

* José Carlos Avellar é coordenador de cinema do IMS.

"La vie d'Adèle", Abdellatif Kechiche (2013)
“La vie d’Adèle”, Abdellatif Kechiche (2013)

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