Verdadeira, só a arte concreta

Artes

29.01.15

Mais de 2.000 itens das séries fotográficas Fotoformas e Sobras, de Geraldo de Barros, estão agora no acervo do IMS. Esse conjunto cria um caminho fértil para entender o processo de trabalho do artista e torna o IMS um centro de pesquisa e referência para o estudo da sua obra. No próximo sábado, 31 de janeiro, o IMS-RJ promove dois eventos relacionados: lançamento do livro Geraldo de Barros e a Fotografia e uma “conversa na galeria” com Paulo Sergio Duarte, às 17h, com entrada franca. A exposição Geraldo de Barros e a Fotografia fica em cartaz no IMS-RJ até 22 de fevereiro.

Autorretrato. Geraldo de Barros ao lado da obra Máscara africana (1949), na exposição Fotoforma, Masp, janeiro de 1951. Arquivo Geraldo de Barros, Genebra, Suíça

Geraldo de Barros fez fotografias em dois momentos-chave de sua trajetória. Entre 1946 e 1951, num período de formação, paralelamente à produção de pinturas, desenhos e gravuras, ele vivenciou um intenso processo de criação denominado Fotoformas. O segundo momento corresponde a seus dois últimos anos de vida, de 1996 a 1998, quando produziu a série Sobras a partir de seu arquivo de fotos de família. A exposição Geraldo de Barros e a fotografia e o livro que a acompanha procuram apresentar de forma abrangente sua relação com a imagem fotográfica. Além de abordar as séries Fotoformas e Sobras, incluem também pinturas realizadas nos anos 1960 e 1970 sobre fotos publicitárias de anúncios e outdoors. As três fases deixam claro que, para Geraldo de Barros, a imagem fotográfica não era uma representação objetiva da realidade, mas um material passível de ser manipulado de diferentes maneiras.

O ponto de partida é a exposição Fotoforma, realizada no Museu de Arte de São Paulo (Masp), entre 2 e 18 de janeiro de 1951. Na ocasião, já convicto de que a fotografia e a pintura não deveriam representar a realidade, o artista expôs, sob um arcabouço construtivo, imagens tão distintas quanto uma natureza-morta, abstrações geométricas e desenhos que pareciam feitos por uma criança em idade pré-escolar. Na ocasião, os procedimentos pouco ortodoxos e as maneiras de apresentar as imagens evidenciavam a concepção de que a fotografia é um objeto concreto no tempo presente e não uma janela para outra realidade. Os trabalhos faziam parte de um intenso processo de experimentação que, paradoxalmente, questionou a figuração por meio da fotografia, interrompendo um modo de ser moderno que, no Brasil, até aquele momento, havia quase sempre rejeitado tanto a abstração como a produção mecânica de imagens.

Fotoforma, c. 1950. São Paulo, Brasil. Fotografia em papel de gelatina/prata (superposição de imagens no fotograma). Coleção Fernanda Feitosa e Heitor Martins

Inseparáveis das pesquisas em pintura e gravura, as fotografias de Geraldo de Barros iluminam e, ao mesmo tempo, são iluminadas por aquelas produções. Os textos reunidos no primeiro núcleo deste livro procuram destrinchar a relação um tanto controversa de Geraldo de Barros com o Foto Cine Clube Bandeirante, considerado como o principal berço da fotografia moderna no Brasil, e, por outro lado, chamam a atenção para seus contatos com outros ambientes e grupos, especialmente aquele reunido em torno do crítico Mário Pedrosa, no Rio de Janeiro. Em torno desse mesmo período, Simone Förster investiga a obra fotográfica de Geraldo de Barros à luz do contexto internacional, comparando-a com a fotografia experimental que emergiu na Europa no segundo pós-guerra, em especial com a produção do grupo alemão Fotoform.


They Are Talking, 1964. Pintura a óleo, colagem e nanquim sobre aglomerado. Coleção particular © Fabiana de Barros

Em seguida, João Bandeira analisa as pinturas realizadas por Geraldo de Barros nos anos 1960 e 1970, no contexto de arrefecimento das convicções concretistas e de divulgação da Pop Art no Brasil, sobretudo por meio das Bienais. Por volta de 1964, paralelamente ao seu trabalho como designer de móveis, o artista iniciou uma nova série de obras que misturavam pintura e colagem a partir de cartazes de propaganda. Os títulos em inglês − Tragic Glub Glub, They Are Playing (Poker Face) −explicitam a referência pop e a atitude irônica e sarcástica em relação à cultura de massa. Ele recortava ou enquadrava cenas de cartazes para depois cobri-las com uma tinta rala, preta ou amarela, que deixava entrever a retícula da imagem impressa em offset. Fisionomias distorcidas e colagens desarticuladas dão um caráter grotesco e pernicioso às imagens, ao mesmo tempo que revelam um olhar atento às mudanças de costumes e aos novos papeis assumidos pelos gêneros. Na década de 1970, as pinturas ganham em cor e dimensão, pois passam a ser feitas sobre grandes folhas de outdoors. As marcas e os personagens escolhidos como tema estão entre os mais populares da época: sabonete Francis, patê Sadia, O Gordo e o Magro, Marlboro, o artista e empresário circense Orlando Orfei. Nessa fase, Geraldo de Barros enfatiza o caráter invasivo e artificial da publicidade, reenquadrando as imagens em primeiríssimo plano. Em 1977, na ocasião da exposição 12 anos de pintura, 1964 a 1976, no mam-sp, o artista explicou a preocupação que impulsionava a elaboração dessas obras: “Eu nunca sei, como ser humano, o que está acontecendo realmente, se aquele colorido que a televisão me retransmite é aquilo mesmo em definitivo, mas sei que esses códigos nos são transmitidos querendo estabelecer as coisas que vamos pensar”.1 Ele sabia que, por meio das novas tecnologias e formas de comunicar, não era possível almejar a objetividade pretendida pela arte concreta. Utilizando recursos próprios da publicidade – cores estridentes, grandes tamanhos e foco nas emoções –, suas obras escancaram o sentido impreciso e enganoso das imagens, distanciando a fotografia de qualquer efeito de realidade.

Em 1977, o convite para participar da exposição Projeto construtivo brasileiro na arte,2 a primeira grande revisão crítica da arte concreta e neoconcreta realizada no país, instigou o artista a retomar pela primeira vez sua produção fotográfica inicial. Nesse momento, ele produziu novas tiragens e ampliou fotos que não haviam sido copiadas nos anos 1940 e 1950. Interessante notar também que as cópias dos anos 1970 são de alto-contraste, o que ressalta seu aspecto gráfico. Além disso, algumas delas foram coladas sobre um suporte rígido de madeira compensada – bastante comum como acabamento de imagens fotográficas na época –  e tiveram suas laterais pintadas, o que dá a elas mais uma vez o aspecto de objetos pictóricos.3

Abstrato, série Fotoformas, Estação da Luz, 1949. Fotografia em papel de gelatina/prata colada em aglomerado (superposição de imagens no fotograma), Coleção Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Dois anos depois dessas experimentações, Geraldo de Barros sofreu a primeira das quatro isquemias cerebrais que, ao longo dos anos, comprometeriam gravemente seus movimentos e sua fala. A partir dessa data, iniciou novas séries de pinturas geométricas realizadas em fórmica, que então eram executadas por assistentes.

Em 1993, a apresentação das Fotoformas no Musée de L’Elysée, em Lausanne, deu início a um amplo processo de revisão de sua obra fotográfica dos anos 1940 e 1950. Como consequência, vieram novas exposições e publicações no Brasil e no exterior, o que o estimulou a trabalhar novamente com fotografia. De 1996 a 1998, mesmo bastante enfraquecido, Geraldo de Barros realizou, com a assistência da fotógrafa Ana Moraes, a série Sobras, a partir do arquivo de negativos e fotos de sua família. Trata-se do trabalho mais intimista do artista, como se, por meio de trucagens, cortes e apagamentos, ele estivesse editando sua própria memória.

Na exposição Geraldo de Barros e a fotografia, as Sobras são apresentadas como um intenso e amplo processo de trabalho, com resultados nem sempre definitivos, pois foi interrompido pelo falecimento do artista. Exibimos o conjunto completo de 249 colagens de negativos sobre placas de vidro realizadas nessa época e 62 fotografias ampliadas a partir delas, além de exemplos de montagens misturando negativos e positivos e de colagens de fotografias recortadas sobre vidro.


Obra da série Sobras, 1996-1998. Fotografia. Tiragem em 1996-1998. Coleção Sesc São Paulo © Fabiana de Barros

No texto sobre essa última fase, Tadeu Chiarelli destaca o caráter melancólico das Sobras e a importância da apropriação de imagens, produzidas pelo próprio artista ou por terceiros, em seu processo criativo. Nota-se que a ideia de apropriação, mais evidente nas pinturas dos anos 1960 e 1970 e nas Sobras, já estava presente na época das Fotoformas, quando o artista modificava sem pudor as fotografias que ele mesmo havia tirado. Por meio dessa e de outras características, a experimentação fotográfica dos anos 1940 e 1950 se afirma como um laboratório de condutas e procedimentos que alimentaram sua produção durante cinquenta anos. Nas Sobras, por exemplo, ele retoma procedimentos como colagens, sobreposições, desenhos e gravações em filmes já empregados na série Fotoformas. Os pequenos fragmentos de negativos em preto e branco ou em cor evidenciam a delicadeza das intervenções, o caráter experimental e a capacidade de pré-visualização dos resultados, também característica de sua produção anterior. Já as cópias em papel revelam a permanência da geometria, mas também imprecisões, sujeiras e falhas que apontam tanto para o processo como para a ação do tempo sobre os materiais. Por outro lado, as áreas pretas que aparecem nesses trabalhos remetem aos grandes planos cobertos com nanquim e tinta amarela de suas pinturas dos anos 1960.

Como um processo criativo poderia reunir Expressionismo e arte concreta? Clareza e precariedade? Utopia e melancolia? Afinidades com Max Bill e Jean Dubuffet? Universalidade e intimismo? Embora o artista seja mais conhecido por seu vínculo com a arte concreta, a exposição e os textos aqui reunidos explicitam que, ao longo de cinco décadas, sua obra não expressou apenas um olhar otimista e confiante sobre a capacidade do homem de agir racionalmente no mundo. Sua atitude diante da fotografia sugere que, talvez, para ele, a verdade estivesse apenas na arte concreta, de acordo com a qual os planos, as formas, as linhas e as cores de uma pintura são uma realidade em si e não devem servir à representação de nada. “Um plano é um plano, uma linha é uma linha, nem mais nem menos”,[iv] escreveu o artista holandês Theo van Doesburg no manifesto Arte concreta, que propôs o conceito em 1930. A fotografia, pretenso espelho da realidade, além de revelar as estruturas geométricas das coisas, estaria sujeita à manipulação e ao engano, como toda arte figurativa que não explicita seus recursos. Mas, apesar do descompromisso com a especificidade da fotografia como meio, justamente as mais abstratas revelam um amplo domínio técnico, bem como o profundo interesse de Geraldo de Barros pela criação de imagens por meio da luz.

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1 “Geraldo de Barros, 12 anos depois do Grupo Rex”. Folha de S. Paulo, 15.04.1977.

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2 Exposição organizada por Aracy Amaral e Lygia Pape, apresentada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e na Pinacoteca do Estado de São Paulo.

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3 Van Doesburg, Theo. “Arte concreta”, In: Amaral, Aracy (coord.). Projeto construtivo na arte: 1950-1962. Rio de Janeiro/São Paulo: Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro/Pinacoteca do Estado de São Paulo, 1977, p. 42.

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