Você nunca ouviu Demetrio Stratos?

Música

29.02.16

O programa A voz humana desta terça-feira (1º de março) será dedicado a uma única voz – uma voz única –, a de Demetrio Stratos. Nós ouviremos uma experiência vocal impressionante.

Filho de pais gregos, Stratos nasceu no dia 22 de abril de 1945, em Alexandria, no Egito. Aprendeu piano e acordeão, concluiu seus estudos na Grécia e, aos dezessete anos, partiu para a Itália, a fim de estudar arquitetura. A música, no entanto, falou mais alto, e em 1972, junto com Giulio Capiozzo, fundou o Grupo Area, um dos mais importantes do rock italiano. Já interessado em questões relativas à voz, Stratos iniciou um estudo sistemático de musicologia comparada, voltando-se para a vocalidade étnica, especialmente as técnicas de canto orientais.

Stratos trabalhou com laboratórios de acústica e centros de pesquisa médico-científicas da Itália e da França. É de 1972 seu primeiro álbum, Metrodora, no qual registrou suas pesquisas vocais, com destaque para suas incríveis diplofonias, triplofonias e quadrifonias, situações de vocalização em que se consegue emitir mais de uma nota ao mesmo tempo.

Poderíamos dizer que as vocalizações de Stratos estão para o canto como a pintura abstrata está para a figuração. Assim, vem ao primeiro plano uma série de possibilidades vocais comumente abandonadas pelo canto tradicional. Em vez de expressar um conteúdo, Stratos desvincula a voz da linguagem falada e explora uma vasta gama de timbres, alturas, ruídos guturais, sons, gemidos, gritos, balbucios, movimentos labiais, usando diversas técnicas de ressonância e entonação.

Em sua prática vocal, Stratos faz ver os limites do pensamento que compreende a voz como veículo unicamente da linguagem verbal e aponta para a consequente constituição de hábitos auditivos insensíveis à realização de uma “voz-música”. Voltando-se contra tais disposições usuais e dessensibilizante, Stratos afirma as possibilidades anárquicas de um campo sonoro inexplorado, no qual a voz aparece em sua plena materialidade.

Muito embora praticamente desconhecido no Brasil, seu trabalho foi largamente estudado por uma brasileira, Janete El Haouli, no livro Demetrio Stratos – em busca da Voz-Música (2002). Segundo a autora, uma questão central colocada pelo trabalho de Stratos é a da vocalidade como excreção: o vômito de ruídos que interferem e  recolocam “a voz da voz”, ou ainda, uma “emanação dos prazeres sem repressões, a voz como é entendida pelas culturas orais que praticam ações rituais de canto e audição”. Nesta vocalidade, irrompe ainda “o tempo do presente, o instante que reúne passado e futuro, não sendo em nada parecido com o tempo essencialmente linear do discurso verbal-funcional”. Lembro-me de uma passagem de Água viva, de Clarice Lispector, na qual se lê: “cada coisa tem um instante em que ela é, eu quero apossar-me do é da coisa”. A temporalidade do instante nas vocalizações de Stratos busca o é da voz, quando soam multiplicidades extraordinárias, surpreendentes, insólitas.

Ao destacar uma “des-subjetivação” da voz na obra de Stratos – que aciona a comunhão de corpos vocais múltiplos e simultâneos por meio da diplofonia – Heloui aponta para os conceitos de nomadismo e multiplicidade, concebidos por Gilles Deleuze: a voz de Stratos move-se continuamente, sem lugar ou tempo fixos. Deslocando-se simultaneamente entre os balbucios infantis, o canto modal de etnias espalhadas pelo Irã, a Mongólia, o Tibete, a Índia, as muitas Áfricas, certas tradições europeias e também as experimentações das vanguardas ocidentais, Stratos seguiu “uma trilha nômade, sem hierarquias, num devir entre produções díspares, que liberam a explosão dos ruídos do corpo que se ressensibiliza e se descodifica numa vocalidade libertadora para além da representação: pura espessura do ritual de sacrifício – sem sujeito e sem objetos, simplesmente atemporal”. Dessa viagem a diversas tradições, resulta um trabalho surpreendente, anticonvencional, emocionante, pleno de sugestões e atmosferas, no qual a improvisação é um corpo a corpo com o instante, uma busca daquele “é da coisa”.

Pensemos na subjetividade intrínseca ao lied romântico do século XIX, no qual um dos valores mais altos é a capacidade expressiva do sujeito, sua capacidade de exprimir e mimetizar estados de espírito. Compreenderemos que as vocalizações de Stratos dão a ver, ao contrário, uma teatralidade não representacional, abstrata, radicalmente performática. Cito mais uma vez Janete El Haouli, para quem “a voz-música de Stratos retorna a uma polifonia infinita, uma ‘des-subjetivação’ do sujeito que evidencia os (e)stragos e (s)tratos a que essa voz foi modelada, no decorrer da história do canto lírico”.

Demetrio Stratos foi, ao mesmo tempo, um fenômeno vocal, pela sua capacidade incomparável de emitir sons, e um rigoroso pesquisador. Artistas e cientistas consideram unanimemente que era um prodígio vocal. É o que se poderá ouvir no programa dedicado a ele na série A voz humana.

Gênio incomparável, morreu em 1979, com apenas 34 anos.

, ,