Fotografia de August Sander (30ª Bienal/Divulgação)
Em 1931, o fotógrafo alemão August Sander (1876-1964) proferiu em Colônia uma série de seis emissões radiofônicas intitulada “Essência e evolução da fotografia”. Com exceção da quinta conferência, que já havia sido publicada em inglês e que a ZUM publicou pela primeira vez em português, elas são inéditas. Thomas Schatz-Nett, estudioso da obra de Sander, escreveu um texto exclusivo para a ZUM comentando “A fotografia como linguagem universal”. Ele está no momento preparando uma edição crítica das seis palestras, que será publicada em breve na Alemanha.
O projeto mais importante de Sander foi Os homens do século 20, um arquivo tipológico do povo alemão em uma época que o país se transformava dramaticamente. Os mais de 600 retratos que compõem o livro, tirados ao longo de muitos anos, podem ser conferidos até o fim desta semana na Trigésima Bienal de São Paulo. Leia abaixo o texto de Thomas Schatz-Nett:
August Sander, a fotografia e o tipo
“Portanto, vemos que o ser humano também imprime sua marca em seu tempo, e a partir disso é dada ao fotógrafo a possibilidade de compreender a imagem fisionômica de uma época por meio de sua câmera. Não apenas o rosto, mas também o movimento de uma pessoa, faz parte de seu caráter particular. Cabe ao fotógrafo saber estabilizar ou captar esse movimento característico, que refletirá então a fisionomia em sua versão acabada na imagem individual. O homem está no primeiro plano de todos os acontecimentos, pois é ele quem dá forma à imagem do mundo, não contadas, claro, as instâncias superiores.”
Na esteira do iconic turn e do ambiente visualmente cada vez mais produtivo, e por isso talvez mais difícil de compreender, artistas e cientistas se ocupam hoje mais que nunca da ampla produção de August Sander. É da quinta conferência – “A fotografia como linguagem universal” -, reproduzida na íntegra na ZUM # 3, que vem a citação que abre esta breve introdução. Se a contemplamos mais de perto, logo resultam disso várias perguntas: o que Sander compreende como fisiognomonia? Que meios se encontram à disposição do fotógrafo? E, por fim – para usar as palavras de Albert Renger-Patzsch (1961) -, a fotografia pode retratar um tipo?
O fotógrafo alemão August Sander (1876-1964) ainda conheceu, no princípio de sua longa fase produtiva, de mais de meio século, os antigos procedimentos fotográficos do século 19. Depois da Primeira Guerra Mundial, ele se destacou a ponto de tornar-se um dos principais representantes do movimento artístico Nova Objetividade (NeueSachlichkeit). Sander fez, entre outros, registros fotográficos de paisagens, da natureza e da arquitetura. Mais conhecidos hoje, no entanto, são seus retratos. Sobretudo com a publicação de Semblante da época (Antlitz der Zeit), de 1929, Sander mereceu grande atenção. O volume fotográfico apresenta um corte transversal da sociedade da República de Weimar, e é, portanto, uma síntese dessa sociedade. Semblante da época foi pensado por Sander como volume introdutório de seu projeto de grande vulto Os homens do século 20 (Menschendes 20. Jahrhunderts). Provavelmente Sander começou a concebê-lo no início da década de 1920, estimulado por discussões no âmbito do grupo artístico chamado “progressistas de Colônia” (Kölner progressive), com o qual mantinha estreito contato. Partindo de retratos de clientes no Westerwald, que ele visitava como fotógrafo itinerante, saindo do ateliê em Colônia, e de outras fotografias que surgiram ao longo de décadas, tanto do círculo de seus clientes na cidade como também no de conhecidos, familiares e de encontros casuais, Sander desenvolveu um obra arquivística organizada de modo quase enciclopédico. Isso apesar de as imagens não mostrarem – pelo menos da forma como Sander as concebia – indivíduos, e sim representantes de uma categoria. O fotógrafo expandiu, corrigiu e reordenou seus arquivos durante a vida inteira, e sua obra só ganhou uma versão definitiva postumamente. Semblante da época está hoje entre os incunábulos da história da fotografia, embora os outros projetos, como suas fotos de paisagens, constituam uma parcela igualmente considerável de sua criação.
Na primavera de 1931, dois anos após a publicação de Semblante da época, Sander elaborou, para o Westdeutscher Rundfunk (wdr), a já mencionada série de conferências, que permitiu ao contido Sander – no que dizia respeito a escritos – uma nova possibilidade de expressar suas ideias sobre a fotografia. Já há alguns anos havia uma colaboração bastante estreita entre ele e o wdr, e é possível que o trabalho, financeiramente não desprovido de interesse, tenha surgido de uma iniciativa de Walter Stern, redator responsável pelos setores de arquitetura e das artes plásticas no wdr, cujo nome era associado aos “progressistas de Colônia”.
A citação reproduzida aqui descreve a compreensão da fisiognomonia por meio da “fotografia pura”, conforme o fotógrafo se expressa em outra passagem. Sander compreende o conceito de fisiognomonia de modo diferente de, por exemplo, Johann Caspar Lavater (1741-1801) ou Franz Joseph Gall (1758-1828), que a entendem como a interpretação das formas do rosto e do crânio. Para Sander, os gestos, as roupas, os atributos, o ambiente, a postura e até os movimentos de uma pessoa fazem parte de sua fisiognomonia. Ele parece subsumir no conceito de fisiognomonia tudo o que hoje compreendemos como aspectos da comunicação não verbal, incluindo o conceito amplo da comunicação visual. Sander também parece reconhecer o potencial de uma fisiognomonia legível sempre que tempo, ambiente ou a própria pessoa atuem como um “selo”, e por isso fala de uma “imagem fisionômica da época”. Isso diz respeito não só a seres humanos mas também a cidades e até paisagens, o que entre outras coisas torna compreensível seu grande interesse pela fotografia paisagística.
O credo de Sander, frequentemente proclamado, era: ver, observar, pensar. Na psicologia da cognição atual talvez se falasse de processos top-down, bottom-up e de aprendizado. E, se pensarmos na sémiologie de Ferdinand de Saussure – ainda que Sander provavelmente não a conhecesse -, também se poderia falar, analogamente, em uma busca por vínculos entre imagem e conceito, vínculos que podem ser formados novamente ou diferenciados através da observação intensiva. Mas o decorrer desse processo de conhecimento, teoricamente apresentado em três fases, na prática sucede condicionado de modo menos linear que situacional, é possível inclusive que em intercâmbio irregular. A câmera é o meio mais adequado para visualizar esses três passos circulares do encontro com o objeto a ser investigado. “Por meio de seu aparelho”, conforme se compreende, seria possível abranger “a imagem fisionômica da época”.
E o que dizer, pois, do tipo? Por tipo deve-se compreender um indivíduo cujas características representam o fundamento para a determinação de um gênero ou espécie. E isso se assemelha a um protótipo, que é o melhor representante de sua categoria. Mas ainda assim a fisiognomonia de determinados indivíduos se adéqua mais a um protótipo do que a de outros. O que isso quer dizer para a fotografia? Pressupondo que o fotógrafo encontre um representante ideal e consiga “estabilizar e captar” sua característica prototípica, sua fisiognomonia poderá retratar, na imagem fotográfica individual, o tipo “em sua versão acabada”. É possível, portanto, elucidar, puramente com a fotografia, um protótipo, e assim estabelecer a fotografia de um tipo. August Sander diz: o homem “delineia a imagem do mundo” e reconhece para si, na condição de fotógrafo, de modo inquestionavelmente lógico, a responsabilidade do documentário.
* Thomas Schatz-Nett (Suíça, 1978) trabalha desde 2009 em sua tese de doutorado sobre August Sander, sob orientação do catedrático dr. Bernd Stiegler, na Universidade de Constança, na Alemanha.
* Tradução de Marcelo Backes