Sábado, 24 de março, terceira récita da ópera La Traviata, de Verdi, no Teatro Municipal de São Paulo. Tendo lido pouco a respeito da montagem, apenas sabendo que reformulava o tempo e o espaço da história, fui à apresentação conservadoramente desconfiado: eu temia aquelas modernices que metem os pés pelas mãos. Para sorte de todos nós que lotamos o Municipal, a encenação funcionou nesse dia de modo arrebatador. E trouxe à ordem do dia o nome de uma soprano cuja técnica tende somente a aprimorar-se a cada temporada pelas casas do mundo afora.
Ato primeiro: o palco mínimo
Com libreto escrito por Francesco Maria Piave e música composta por Giuseppe Verdi, a ópera – de 1853 – inspira-se no romance A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho. A história de suplício e redenção da prostituta Marguerite Gauthier, aqui com o nome de Violetta Valéry, ganha com a música de Verdi contornos precisos para ser expressa como uma jornada de purificação e alcance de sentimentos elevados. Consciente de que morrerá vitimada pela tuberculose, a personagem rejeita os prazeres para tornar-se mártir e honrar o seu amor verdadeiro pelo jovem Alfredo Germont.
São esses sentimentos e transições que parecem interessar ao diretor cênico Daniele Abbado, ao cenógrafo Angelo Linzalata e à figurinista Colomba Leddi. O trio de italianos limpa a cena e os intérpretes do peso que móveis e roupas do século 19 trariam. O palco, provido do mínimo de objetos, encontra-se inclinado, um declive em direção à plateia. Em direção ao fundo, teríamos ascensão; rumo ao fosso da orquestra, dá-se a queda.
Impressiona a liberdade de movimento que os personagens podem explorar. O espaço amplo que os envolve permite que nos concentremos nos cantores e na música, sem nos distrairmos com adereços e elementos supérfluos. Não é a primeira vez, é claro, que La Traviata se despe – com o perdão do trocadilho – da marcação de época. Apenas como referência e sem intenção de fazer comparações, abaixo segue a abertura da ópera em montagem apresentada no Festival de Salzburgo de 2005, com direção cênica de Willy Decker e cenário e figurinos de Wolfgang Gussmann:
http://www.youtube.com/watch?v=YlYZZRMUsCg
Ato segundo: uma diva, Irina Dubrovskaya
Nas récitas dos dias 22 e 24 de março, o Teatro Municipal de São Paulo conheceu seguramente um nome que desejará ver mais vezes: Irina Dubrovskaya. Nascida em 1981, a jovem soprano russa foi diversas vezes aplaudida em cena, obrigando o maestro Abel Rocha a retardar a retomada de algumas sequências. E não era para menos. Sua própria experiência no papel de Violetta Valéry e a encenação inteligente criaram as condições ideais para que sua voz e presença cênica se impusessem. Não foi apenas de beleza física que se compôs sua personagem: a cada ária (“Ah, fors è lui”/”Sempre libera”) ou dueto (com o tenor Roberto de Biasio), ficava cada vez mais claro que a noite era sua. O seu simples vestido branco, do começo ao fim da ópera, dava-lhe leveza; e à personagem, a simbologia da purificação.
Sem dúvida, Irina vem colecionando sucessos. No vídeo abaixo, vemos a cantora – mesmo sem uma boa direção e com figurino de gosto duvidoso – exibir a sua voz para ser ovacionada em outra montagem de La Traviata, apresentada em Savona, Itália, em 2010:
http://www.youtube.com/watch?v=w-9gxLQ5G4E
Ato terceiro: outras vozes
Nos próximos dias, duas outras sopranos prosseguem a representação de Violetta Valéry: Adriane Queiroz (fazendo par com Marcello Vannucci) e Rosana Lamosa (esta com Fernando Portari). São quatro nomes da primeira linha dos cantores líricos brasileiros, que poderão ser vistos nas récitas dos dias 31/3, 1, 3, 5 e 7/4 (clique aqui para saber mais sobre horários e ingressos).
Benditos os que sabem renovar as linguagens cênicas e nos fazem respirar oxigênio novo. Quando, cansados ou atrofiados pela sensação de um mais do mesmo, nos deparamos com um espetáculo inesperado, podemos voltar para casa mais leves, repensando a vida e o amor e cantalorando a força da música de Verdi. Como a melodia do dueto “Un di, felice” – em que se fala sobre “croce e delizia al cor” (“cruz e delícia para o coração”) -, abaixo interpretado por Luciano Pavarotti e Joan Sutherland. A gravação é de 1979:
http://www.youtube.com/watch?v=Saoc0RMAKuk
* Na imagem que ilustra esse post: foto de Sylvia Masini da ópera La Traviata.