Francisco Iglésias: 90 anos

Por dentro do acervo

29.04.13

Por ocasião dos 90 anos de nascimento do historiador e ensaísta mineiro Francisco Iglésias (1923-1999), o IMS do Rio de Janeiro realiza, às 17h30 de 3 de maio, uma conversa entre o escritor Silviano Santiago e o historiador José Murilo de Carvalho.

Francisco Iglésias e Otto Lara Resende, Fevereiro de 1958

“Amizade é como esmola: pouco ou muita, não se recusa”, escrevia Otto Lara Resende, não sem ironia, ao historiador mineiro Francisco Iglésias. A máxima tinha um motivo: antes de seguir para a Europa, onde desembarcaria no porto do Havre, em 6 de fevereiro de 1958, Iglésias avisou ao amigo, por carta, que não podia visitá-lo em Bruxelas. Naquele ano, Otto morava com a família na capital belga a serviço do governo brasileiro – era adido cultural à embaixada do Brasil. “Adido e mal pago”, dizia ele, em mais uma das suas famosas frases.

Ao contrário de contemporâneos seus, entre os quais Otto e outros mineiros famosos, Francisco Iglésias, nascido em 28 de abril de 1923, não deixou Belo Horizonte a não ser por um ano e quatro meses, período em que, a convite de Alfredo Mesquita, trabalhou na Livraria Jaraguá, em São Paulo. “Mineiro de nascimento e de caráter”, como dizia, sonhou muito em deixar seu Estado natal, mas ficou mesmo foi na FACE/UFMG, onde fez brilhante carreira de professor de história econômica geral e do Brasil e história social e política do Brasil.

A comunicação a Otto do plano de viagem, que excluía Bruxelas do roteiro, poderia ser lida por outra pessoa como uma prova de atenção. Mas não pelo autor de Boca do inferno, que rapidamente armou tempestade com o que considerou desfeita. Amigo feroz, desses que esperam, exigem e não dispensam a presença do outro, em qualquer circunstância, Otto não pôde se conformar com a desastrada justificativa de Iglésias, que escreveu com todas as letras: dos cinco dias que permaneceria em Paris, roubaria um para ir a Londres visitar o “querido amigo José Vargas”, físico brasileiro que obteria o título de PhD em 1959, pela Universidade de Cambridge.

De nada adiantou a tentativa de confortar Otto com a possibilidade de “um encontro nosso em algum local da Europa”. Nem mesmo declarar que se sentiria frustrado se não visse o amigo no continente europeu. Tudo o que contou para Otto foi ser trocado por José Vargas. Tomou-se de fúria. Fúria de amor, está claro, porque não escondia a overdose de ciúme na carta que enviou a Iglésias de Bruxelas, 13 de fevereiro de 1958:

Apesar desse desejo [de encontrar Otto], você rouba um dos seus cinco dias de Paris para ir a Londres, ver um “querido amigo”. Quanto pode a amizade! Meus parabéns. É um espetáculo raro, no mundo de hoje, esse devotamento, esse calor! De minha parte, fico esperando que apareça pela Europa um “querido amigo” que se disponha a vir a Bruxelas. Me ofereço até para ir buscar de carro, para ajudar a amizade… […] Ah, meu caro, essa viagem à Europa serviu para revelar você e deu-me a certeza de que eu não me conto entres os seus “queridos amigos”. Isto é definitivo, não adianta querer consertar.

Não adiantava? Pois Iglésias nem tentou consertar. Ferido pela contundência de Otto, replicou no mesmo tom das mais triviais brigas de ciúme:

Aliás, quando é que qualquer coisa minha já teve algum interesse para você?

As duas cartas que se reproduzem a seguir, posteriores aos acontecimentos narrados até agora, mostram que o destempero de Otto se deveu às saudades do Brasil e dos amigos. Estava feliz na Bruxa, como ele chamava Bruxelas, mas não o suficiente para prescindir do abraço de Francisco Iglésias. Abraço que, de direito, era seu – achava Otto -, e, no entanto, ia ser dado a José Vargas. Imperdoável.

Aliás, não era só a Iglésias que ele cobrava amor. Em outubro daquele mesmo ano de 1958, escrevia a Hélio Pellegrino, queixando-se de não receber cartas:

Minha impressão, cada vez mais fundada, é que amigos como você e Paulo [Mendes Campos], por exemplo, não querem nada comigo. Fico me achando mulher de soldado, tanto mais apaixonada quanto mais desprezada…

Daquele 1958 a dezembro 1992, ano em que Otto morreu, a correspondência entre ele e Iglésias tinha retomado a cumplicidade de sempre. A amizade fora restaurada, a generosidade de Otto limpava arranhões do passado. São 366 cartas trocadas entre os dois, das quais 181 escritas por Iglésias e 185 enviadas por Otto.

Esses documentos se encontram nos arquivos de Otto Lara Resende e de Francisco Iglésias, no Instituto Moreira Salles. As mais de oito mil cartas do arquivo do primeiro mostram, sobretudo, que o exercício da amizade foi para ele um dos mais prestigiados da sua vida.

* Elvia Bezerra é coordenadora de literatura do IMS.

Leia as cartas de Francisco Iglésias e Otto Lara Resende, datadas de fevereiro de 1958 [clique em cada imagem para obter uma versão maior]:


Francisco Iglésias a Otto Lara Resende, 19/2/1958

 

Francisco Iglésias a Otto Lara Resende, 19/2/1958

 

Francisco Iglésias a Otto Lara Resende, 19/2/1958

 

Francisco Iglésias a Otto Lara Resende, 19/2/1958

 

Otto Lara Resende a Francisco Iglésias, 21/2/1958

 

Otto Lara Resende a Francisco Iglésias, 21/2/1958


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