O conforto dos estranhos – por Paulo Roberto Pires

Artes

09.10.12

Sou daqueles que não deixam de perder uma performance. Sobretudo aquelas em que, além de simplesmente constrangido pela ação do artista, sou instado a “participar” de alguma forma. O que me tornaria o candidato ideal para evitar empenhadamente o que o artista Tino Sehgal vem fazendo na Tate Modern, em Londres. Mas “These associations”, que fica em cartaz até o fim do mês, é tão desconcertante que entrei com assustadora facilidade no barato das setenta pessoas que participam da mais desconcertante ocupação já realizada no Turbine Hall,  a gigantesca ante-sala do museu.

Desde 2000 o Turbine Hall – 155 metros de extensão, 35 metros de pé-direito – é ocupado por obras de encomenda na chamada Unilever Series. Os artistas, comissionados pela empresa que dá nome ao projeto, costumam se empolgar com as dimensões superlativas: lá Louise Bourgeois plantou uma de suas imponentes aranhas, Olafur Eliasson fez brilhar um sol ofuscante e, na cada vez mais tênue fronteira entre o museu e o parque de diversões, Carsten Höller ergueu serpenteantes tobogãs, talvez na primeira obra escorregadiça da história.

Sehgal, que tem 36 anos e, a julgar pela recente entrevista à New Yorker, adora desdizer tudo o que se diz sobre sua obra, prefere falar em “situações construídas” do que em performance. Tenho que concordar com sua lógica tortuosa: no mundo da arte, performance pressupõe uma ritualização clara, a documentação do que é feito (só assim sabemos, por exemplo, o grau de insanidade de uma Marina Abramovic) e, por mais que haja interação, uma fronteira resistente entre artista e público. Nada disso vale para Sehgal, que para começar faz com que suas obras só existam assim, pelo relato de alguém que as experimentou – e jamais pelo registro.

Em 2005, meio perdido na Bienal de Veneza, ouvi falar pela primeira vez de Sehgal, inglês radicado na Alemanha. E não necessariamente por meu conhecimento do mundo das artes. É que o pavilhão da Alemanha anunciava dois artistas e só se via a obra de um deles, o escultor e pintor Thomas Scheibitz. A outra obra, “This is so contemporary”, acontecia durante a visita da galeria: de uma hora para outra, simpáticos senhores e senhoras, disfarçados de guardinhas de museu, começavam a estalar os dedos e, cantando, em formação teatral, cantavam: “This is so contemporary!”.

Agora, em Londres, tudo é mais confuso. Ao descer a rampa da Tate, o que se vê são pessoas zanzando, às vezes correndo, às vezes cantando em uníssono  – esta a única dica óbvia de que ali acontece uma ação organizada. Muitos dos participantes recrutados por Sehgal têm “cara de artista” e se vestem como tal; mas tantos outros, os melhores e mais interessantes, poderiam simplesmente estar visitando a galeria. Como a mulher de meia idade que se aproximou de mim e começou a contar, numa estranha mistura de naturalidade e cálculo, uma história sem clímax sobre como levava em seu corpo a marca, imaterial, de uma queda na infância. Por alguns minutos, em narrativa bem costurada, me falou do reencontro com a dor, com o lugar e de como reconciliou-se com o passado em sua vida adulta.

À medida que se caminha pelo Turbine Hall as coisas ficam mais difíceis. Você espera uma intervenção, mas não sabe de onde, já que muitos visitantes começam a se comportar como se estivessem na performance. Não suspeitei, por exemplo, da senhora que começou a me contar, melancolicamente, sobre seu orgulho em ter sido professora primária numa Londres menor e mais humanizada, sua responsabilidade em educar as crianças do bairro que conhecia pelo nome. Hoje, restava a ela a certeza do dever cumprido e a sensação, natural, do irremediável.

No terceiro encontro, uma mulher madura, sem a menor pinta de performer, me narrava, inconformada, como sua irmã impediu sua ida ao enterro do cunhado, que acabara de morrer na França. As duas viviam apenas das lembranças do passado, dos vínculos de infância, em constante troca de emails. Argumentei que as relações assim, virtuais, são cada vez mais comuns e legítimas, mas a ela parecia difícil a ideia de que não pudesse se despedir do morto, ainda que com ele também não mantivesse uma relação regular.

Quando achei que estava envolvido demasiadamente nessas histórias quase sempre melancólicas, tentei fotografar as performances, sempre resultando em cenas frustrantes – como as que ilustram este post. E aí uma mulher de 20 e poucos anos me aborda. Sotaque forte, ânimo nada melancólico, me fala de seus amigos em Londres (quase todos estrangeiros como ela, que é francesa) e de como sua irmã, em visita à cidade, queria passear no campo e ver o luar. Animada, me perguntou de onde eu vinha. E, querendo saber mais detalhes de minha ida a Londres (negócios? amigos?) foi a vez dela ouvir a motivação menos óbvia de uma viagem inesperada e improvisada, que relatei com os detalhes que meu inglês permite. Desconcertada, ela apertou minha mão e, olhando nos olhos, me desejou boa sorte. Eu acabara de fazer parte, por menos de um minuto, da obra de Tino Sehgal.

* Paulo Roberto Pires é escritor e editor da revista Serrote.

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