* Nelson Freire completa 70 anos no dia 18 de outubro. Homenageando o pianista, o cinema do IMS-RJ exibirá, entre os dias 12 e 19 de outubro, em 35mm, o documentário Nelson Freire, dirigido por João Moreira Salles, com argumento de Flávio Pinheiro e roteiro de João, Flávio e Felipe Lacerda, como parte da mostra Nelson Freire 70 anos. O texto abaixo foi escrito por João Moreira Salles em 2002 para o lançamento do filme.
Como a maioria dos brasileiros que gosta de música, já conheço Nelson Freire há muito tempo. Só que ele não sabia. Ainda garoto eu frequentava os seus concertos no Teatro Municipal do Rio, ouvindo com espanto aquele que foi descrito recentemente pelo principal crítico de música do jornal Le Monde como um dos maiores pianistas da atualidade: “É possível encontrar três ou quatro pianistas tão excepcionais quanto Nelson Freire, mas ninguém encontrará um melhor”, foram as palavras exatas de Alain Lompech.
Durante os anos 80 e 90, toda vez que Nelson passava pelo Rio eu tentava conseguir um ingresso para ouvi-lo. De todas as coisas extraordinárias que aconteciam no palco naquelas ocasiões, uma das que mais me chamavam a atenção era a elegância contida dos seus gestos. Isso pode parecer estranho, dado que de um músico se espera música e não mímica. Mas sempre achei que a música de Nelson se parecia com seus gestos – todos eles precisos, sem derrames desnecessários, sem nenhuma retórica.
Porém, esse rigor sempre foi um pouco contra a corrente. Uma boa parte do público de música erudita gosta de ver o seu pianista dando golpes de braço à direita e à esquerda, como se o teclado fosse um mar, e ele, um afogado. O problema desse destempero é que quase sempre a música acaba desaparecendo por trás da ginástica. Com Nelson isso nunca acontece. O seu piano é um mar calmíssimo. Acredito que essa elegância seja uma decisão estética; é como se ele dissesse: “Prestem atenção na música e não se deixem ludibriar pela performance”. E suspeito também que se trate de uma questão de recato: “Primeiro Schubert, Chopin ou Brahms, e só depois Nelson Freire”, é disso que Nelson parece tentar nos convencer. É claro que isso é uma ilusão: o Chopin que Nelson toca ninguém toca igual, mas a sensação que a plateia tem ao ouvi-lo é a de um acesso direto à música, sem escalas. Num mundo cada vez mais exibido, esse recato é o traço mais belo de Nelson e, na minha opinião, a razão da extraordinária pureza da sua música.
No Brasil existe toda uma mitologia em torno da figura do escritor mineiro, do político mineiro, do banqueiro mineiro – homens discretos, mais privados do que públicos, que preferem falar de suas obras a exibir suas biografias. Pois bem, mesmo que Nelson não tivesse nascido em Minas Gerais (mas nasceu), ele teria inventado mais um personagem para a categoria: a do pianista mineiro.
Em março de 1999, eu me apresentei a ele. Fazia algum tempo, o jornalista Flávio Pinheiro e eu vínhamos conversando sobre nossa vontade de fazer um documentário sobre Nelson Freire. Gentilmente, Nelson topou. Filmamos de maio de 2000 a agosto de 2001. Conseguimos registrar momentos maravilhosos: Nelson tocando o Segundo concerto de Brahms no Municipal do Rio, tocando o mesmo concerto no Sul da França com a Filarmônica de São Petersburgo, tocando a quatro mãos e a dois pianos com sua grande amiga Martha Argerich, tocando a Fantasia de Schumann em pelo menos três ocasiões diferentes (todas elas de tirar o fôlego), tocando Villa-Lobos dentro de uma igreja barroca com vista para o Mediterrâneo. Porém, não há como negar. Nelson Freire também é feito de lacunas.
Documentaristas têm a estranha mania de achar que tudo, ou quase tudo, deve ser filmado. Foi preciso um pianista mineiro para me mostrar que não precisa ser necessariamente assim. Se entendo bem a psicologia do mineiro, determinadas coisas existem apenas para os amigos, em sinal de respeito e de amizade, como quem diz: “Isso é só pra vocês”. É uma ideia bonita.