Os tais caquinhos

Em processo

28.11.16

Estreia aqui Em processo, nova seção do Blog do IMS dedicada à publicação de textos literários ainda em fase de produção: trechos de romances ou de qualquer outro dos múltiplos gêneros de narrativa longa que brotam todos os dias para satisfazer a pulsão classificatória do mundo, contos ou fragmentos ficcionais que ainda procuram companheiros para buscar o graal furtivo da unidade, poemas que podem (ou não) integrar um conjunto que no futuro será reunido (ou não) dentro de um agradável códice para a conveniência dos leitores.

Não se trata de um espaço para publicar trechos de obras prontas a ocupar as livrarias, ainda que elas possam aparecer. A ênfase, como se apressa em informar o título da seção, estará no processo da escritura, em seu caráter de movimento, de instantâneo imperfeito, um pouco tremido, mas sempre único. Aqui, autores consagrados da literatura brasileira contemporânea deixarão de lado a timidez para surgirem na janela ninando criações ainda em andamento. Estarão ambos um tanto despenteados, talvez com olhos possuídos por remelas e tentando disfarçar uma discreta halitose. Ou seja: estarão belos, e disponíveis, e vulneráveis, e acolhedores.

Mas basta de explicações, que jamais elucidaram coisa nenhuma. Passo a palavra à nossa corajosa primeira escritora: a cearense Natércia Pontes, autora de Copacabana dreams, livro finalista do Prêmio Jabuti de 2013 na categoria Contos e Crônicas. (Daniel Pellizzari)

 

Os tais caquinhos é um romance de formação ou quase. É a história de Abigail e Berta, duas irmãs recém-ingressas na adolescência, que vivem em um apartamento imundo de classe média com Lúcio, o pai acumulador. A narrativa se desenrola numa cidade litorânea do nordeste brasileiro, em meados dos anos 1990. 

 

É muito bom sentir fome

Talvez a maior das lições de Lúcio. A segunda é que cultivássemos o pensamento livre, sem muitas certezas. Embora entendesse de uma maneira intuitiva e nada palpável o que Lúcio queria nos dizer com isso, eu me acostumei a exercitar a dúvida acerca de tudo. Por exemplo: a) portas fechadas nem sempre significavam intransigência ou desprezo da sua família. Podiam muito bem apontar para uma necessidade sadia de se estar sozinho, assim como de manter seus objetos a salvo de pequenos acidentes domésticos e furtos. E se esses objetos significassem caixas de suco ou pacotes de biscoito recheado, nada mais compreensível, pois; b) caixas e mais caixas de papelão ondulado amontoadas uma sobre as outras e abauladas devido ao excesso de conteúdo, de umidade e de traças, e de seus casulos cinza colados no papel como minúsculas arandelas carcomidas pelo tempo, não denotavam desleixo, falta de higiene e ausência de asseio com o lar, pelo contrário, os escombros de papel pardo brindavam o ambiente com um charme intelectual, sobretudo quando tomos coloridos dos mais diversos títulos despontavam das quinas gastas; c) o cheiro doce de barata não era atenuado exclusivamente com o hábito de limpar a casa, outra alternativa sempre à mão era esguichar o sumo da casca da laranja no olho de uma desavisada Berta; d) a ausência de liquidificador em nossa cozinha contrastando com a presença embaraçosa de um mixer encardido cuja hélice só atingia meras duas velocidades não constituía de forma alguma um motivo de vergonha pública, senão, muito pelo contrário, de alegria, já que sua falta podia ser facilmente remediada com o afogamento impiedoso do boneco Ken na privada; e) não possuir a lancheira da Hello Kitty, mas no lugar dela um estômago ácido e oco durante os vinte minutos de recreio (e nos intermináveis minutos conseguintes de aula) significava também beijos longos e molhados em oito colegas de ambos os sexos escondidos sob risadinhas nervosas no cubículo do banheiro; f) avançar no mar até não dar pé não expressava essencialmente uma vontade mole e triste de desaparecer da Terra, mas o desejo romântico de ser uma sereia solitária patinhando de onda em onda à procura de um príncipe humano com topete brilhante; g) manter a escrivaninha em ordem obsessiva como o único lugar da casa em que de fato se possa exercitar controle e autoridade não é um sintoma de que a proprietária da escrivaninha não se sentia benquista em todo o resto da casa, mas de que se trata de uma menina asseada e admirável; h) padecer de fobia de gatos não apontava para a fobia de algo que não fossem gatos, mas de que, sim, esse pequenos demônios ágeis são mesmo medonhos; i) copos sujos mesmo depois de lavados não atesta a imundície dos habitantes de um lar específico, configura apenas um descuido bobo de seus moradores; j) estática de televisão velha nem sempre é um tormento, pode muito bem funcionar como uma divertida luz de leitura durante a madrugada, bastando que se desligue o som; k) mergulhar tardes inteiras em um livro que vai cair na prova de literatura amanhã e empacar na mesma frase porque não há concentração que vença a bolinha de pingue-pongue quicando no piso do vizinho de cima não significa que se vá tirar uma nota risível, mas que se dará um jeito de ludibriar o professor com palavras difíceis, tais como pantagruélico, vicissitude e gnu; l) capachos grafados com um acolhedor bem-vindo exprimem ordem, asseio e lisura, embora não sejam itens mandatórios em todas as entradas de casas; m) dentes de alho brotando na geladeira não são tão asquerosos quanto parecem, podem muito bem ser interpretados como a manifestação do emocionante mistério da continuidade da vida mesmo sob circunstâncias adversas; n) comer um pote inteiro de doce de batata doce em doze horas (substituindo café da manhã, almoço, merenda e jantar) não deve de forma alguma ser tachado como um hábito alimentar inadequado para uma adolescente em desenvolvimento, senão como uma prática exótica dada àqueles espíritos livres das regras impostas pelos ditames socioculturais; o) omitir a primeira menstruação de tudo e de todos e usar camadas espessas de papel higiênico como absorvente íntimo, antes de ser um sintoma de que a confiança nos outros anda confusa e abalada, aponta para maturidade e independência precoces, ou seja, é um motivo de orgulho inconteste para a mocinha em questão, assim como para todos os envolvidos; p) edredons nem sempre são itens obrigatórios e aconchegantes de um lar, por serem mais apropriados ao clima frio pode-se muito bem prescindir deles. Raciocínio semelhante pode ser aplicado a jogos de cama sem furos carcomidos por baratas e com todas as peças preservadas (lençol de cima, lençol de baixo e fronha de travesseiro) combinando-se delicadamente entre si, pois uma vez que se faça calor ou frio, todos dormem de olhos fechados — salvo Lúcio, que sempre dorme com um olho aberto e o outro fechado, crocodilamente a postos, caso alguém queira enganá-lo ou mesmo atacá-lo; q) depilação nem sempre é um recurso cosmético, não obstante é sabidamente considerada uma prática tola e dolorosa cujas mães das minhas amigas inventaram para as filhas delas; r) cartões de vacina não precisam essencialmente estar guardados numa pastinha sanfonada (cada compartimento etiquetado com o nome de uma filha específica, dispostos em ordem de nascimento) até porque ninguém mais contrai doenças antigas e há muito erradicadas no país (exceto tétano, hepatite B e coqueluche); s) micro-ondas são bonitos, divertidos e práticos, mas sobretudo dispensáveis — principalmente quando explodem do nada dentro do aconchego do lar deixando feridas enormes e abrasivas no rosto de serelepes crianças de oito anos; t) cães também são mortais e jamais devem ser afagados. Quando da presença de uma dessas bestas-feras a primeira providência a ser tomada é subir imediatamente na mesa mais próxima e gritar com o dono, chamando-o de criminoso e maluco, afinal, como se desfila assim impunemente com um monstro capaz de morder o rosto de uma indefesa e introspectiva criança de oito anos cujo pai morrera de um AVC fulminante?; u) não significa mesmo que alguém seja maluquete se esse alguém desenha de maneira obsessiva labirintos nos olhos de menininhas molengas — como se lhes faltassem o esqueleto ou fossem todas constituídas de borracha — e que se acomodam entre os estreitos espaços comprimidos entre os espirais de caderno, nos blocos de notas avulsos, nas caixas de remédio, nos prospectos multicoloridos da pizzaria da esquina, no espaço entre um número e outro de centrais de urgência (polícia, disk-veneno, CVV etc.) arroladas na lista telefônica, ou mesmo fragmentadas nos tomos gordos e amarelados das listas telefônicas e na programação da tevê a cabo; v) a sua casa não é tão tantã assim, mesmo que possa ser fielmente descrita como um ferro-velho de decodificadores de tevê a cabo; x) usar sacolinhas plásticas de supermercado para guardar tudo, eu disse absolutamente tudo (alimentos, relógios sem bateria, certidões de nascimento, chinelas, pratos, bibelôs de louça, isqueiros, frascos de desodorante usados, caixas de óculos, tampas soltas, óculos amassados, porta-retratos, xícaras, escovas de dente, contas vencidas de luz, talheres, borrachas, frutas esquecidas, contas de água a vencer, pentes, boletins escolares, cartões de viagem de um parente distante etc.), não é tão horrível quanto parece, pelo contrário, é ecológico, higiênico (protege do contato com as baratas) e muito prático (caso a sacola esfarele devido ao extenso tempo de uso basta substituir por outra novinha em folha); w) o barulho que a sacola plástica faz quando manipulada não é necessariamente desagradável, mas relaxante, posto que emula o barulho do mar; y) descumprir todas as regras (não entre, não mexa, não leia) deixando pegadas e digitais nas poeiras que cobrem o chão e todos os objetos e móveis precários do apartamento, cedendo corajosamente à curiosidade e ao tédio que mais uma vez foram maiores que o medo, está longe de ser a maior afronta à figura paterna já atribuída a uma filha; z) ouvir continuamente, diante de qualquer tipo de frustração ou quebra de expectativa, seu pai urrar eu quero a morte! e perguntar a Deus com insistência e fúria por que a morte não me vem?, ouvir essa sequência de frases repetidas vezes até que se memorize o espaço de tempo entre uma frase e outra e então se possa repetir junto com seu pai e declamar em uníssono cada sílaba dos bordões, eu que-ro a mor-te!, emudecendo a voz e fingindo ser um ventríloquo insolente, por que a mor-te não me vem?, não passa de uma cena banal que acontece nas melhores famílias e não provoca nenhum tipo de mágoa ou de dor.

, , , , , , , , , , , ,