Parecer e aparecer

Fotografia

14.04.12

A seção FYI (acrônimo de For Your Information, em inglês) estreia hoje no blog do IMS disposta a trazer os ares da mudança que o século 21 vem imprimindo em nosso dia a dia – e ela não está restrita a nenhum assunto, a não ser à contemporaneidade, indo do refinado ao trash, do hi-brow ao baixo escalão, do analógico ao digital. No comando da coluna estão Alexandre Matias, editor do Link, o caderno de tecnologia e cultura digital do jornal O Estado de S. Paulo e dono do site TrabalhoSujo.com.br, e Heloisa Lupinacci, editora-assistente do Paladar, o caderno de gastronomia do mesmo Estadão, além de autora dos blogs Caracterescomespaco.com e DrumBun.com.

Se a high society virou a Sociedade do Espetáculo e as redes sociais ajudam qualquer um a criar sua própria alta sociedade, é natural que a mudança de sentido do termo social venha acompanhada de uma preocupação exagerada com a aparência. Não que isso seja novidade na história da humanidade. Índios botocudos aumentavam os lábios, as mulheres gir afa da Birmânia alongam o pescoço e todo mundo se olha no espelho antes de sair de casa. Mas estamos assistindo a uma evolução da consciência da aparência que vem alinhada à possibilidade de mudar drasticamente como nos vemos e somos vistos – além de acompanhar a repercussão dessas mudanças quase instantaneamente.

Quando Nigella Lawson – chef, musa do food porn, rechonchuda, rica e sexy, casada com o colecionador Charles Saatchi e conhecida no Brasil principalmente pelo programa de TV que leva seu nome exibido no GNT – deu de comer um macarrão oriental sem graça, feito de batata konjac e perdeu peso, bochechas e viço, a reação foi imediata . Ela tem o direito de se sentir bonita, bradavam uns respondendo àqueles que lamentavam a derrota da boa vida para a boa forma. Nigella era um símbolo da resistência ao padrão de beleza. Linda e acima do peso, dizia coisas como “nada é mais sexy do que o barulho do bacon fritando” seguidas de caretas de prazer ao levar a boca uma colher de purê de batatas com muita manteiga. A rendição à massa oriental sem gosto e vazia de nutrientes foi um triunfo da aparência.

Perez Hilton (não a Paris, o Perez) fez fama online como blogueiro implacável de celebridades, colecionando furos e fotos indiscretas como troféus de sua caça aos famosos. Transformado ele mesmo em uma celeb, logo virou alvo de sua própria aparência: fã confesso de hambúrgueres e sorvetes, era quase o estereótipo já clássico do gordinho gay espalhafatoso, camiseta justa demais denunciando as tetinhas. Eis que há menos de um mês ele reaparece transfigurado, de camisa aberta exibindo um tórax definido e um abdomem trincado. Em instantes, os questionamentos sobre métodos – fez cirurgia? – e as acusações – ele diz que não, ?mas é claro que está mentindo’.

Como Nigella, a cantora inglesa Adele também é ídolo de quem achava que beleza não orna com magreza. As duas não são propriamente novidade – nem as personagens, nem a tendência: desde que Kate Winslet posou nua para Di Caprio em Titanic (e lá vão mais de dez anos, o próprio Titanic já foi içado de volta, desta vez para reafundar em 3D) que o ossário ambulante que habitava as passarelas de moda passaram para o segundo plano, abrindo espaço para a gordura natural de qualquer ser humano. Mas quando Lana Del Rey surgiu como contraponto a Adele, seu hype foi justificado por sua magreza, como se Lana fosse um antídoto à fofura da intéprete mais bem sucedida de 2011.

O caso Del Rey, no entanto, é mais complexo ainda: nascida Lizzy Grant, ela já havia tentado a sorte como cantora há alguns anos, sem sucesso. Mas passou por uma transformação de imagem que, além de mudar sua aparência física, também mudava a forma como poderia ser percebida. Mudou de nome, de visual e criou toda uma mística cult ao redor de sua reputação.

Não que isso seja uma novidade. Bob Dylan se chamava Robert Zimmerman e mudou de nome em reverência a Dylan Thomas e de postura em homenagem ao ídolo trabalhista Woody Guthrie. Os Beatles, caipiras de uma cidade portuária no norte da Inglaterra, pagavam de roqueiros mal encarados, com jaquetas de couro e cigarros pendurados no canto da boca, até que o empresário Brian Epstein os colocou em ternos bem cortados e aparou seus topetes para vendê-los para Londres. E Andy Warhol, que era Warhola, transformou esse papo todo em arte.

A mudança de Lana Del Rey não foi apenas um salão de beleza que transformou o loirinho sem graça de seu cabelo Lizzy Grant em um bolo de noiva à la Mad Men. Nem a possível injeção do cirurgião plástico que lhe acrescentou alguns gramas de beiço transformando sua boca miúda em um bocão da volúpia. Nem a produção do som, arranjos sofisticados e clipes superproduzidos. Lana Del Rey começou a se reinventar a partir da internet.

Ela apareceu com clipes que pareciam caseiros, misturando voyeurismo webcam a imagens retiradas de filmes antigos – de filmecos obscuros dos anos 50 a Uma Cilada para Roger Rabbit, com a curvilínea Jessica Rabbit funcionando como parâmetro imediato. Encarando a câmera como se a desafiasse, Lana foi além de criar uma imagem assumidamente cult. Com o clipe de “Video Games“, sua primeira grande canção, ela usou a estética cult como referência. E não o estreou na MTV – estreou no YouTube. Assim, ela poderia ser qualquer uma – e não a filha de um investidor milionário, como descobriram depois.

O fato é que o YouTube – ou melhor, a internet – funciona como uma tábula rasa para essa edição de personalidades. Inclusive a sua. Ao escolher fotos, frase para a descrição e selecionar os amigos em qualquer rede social, qualquer um edita sua própria vida como preferir – e como prefere aparecer para os outros. Lana Del Rey encontrou uma fresta em que conseguiu autenticidade por não parecer ter sido criada em um laboratório estético . No caso dela, sai o laboratório estético da grande gravadora e entra o laboratório estético do quarto de qualquer pós-adolescente. Basta um computador ou celular (a câmera já vem embutida) e uma imagem na cabeça.

Isso explica o sucesso do Instagram, o aplicativo/rede social para celulares integralmente dedicado a imagens que foi comprado na semana passada pelo Facebook. Antes exclusivo de usuários de iPhones (existia apenas versão para o sistema operacional dos celulares da Apple até que, no início do mês, foi lançada uma versão para Android, do Google usado em celulares de diversas marcas), nele cada usuário tem um perfil formado exclusivamente por fotos, tiradas quase sempre com a câmera do celular. Uma vez congelada a imagem, o usuário escolhe um filtro (retrô, colorido, branco e preto, super contraste, tipo pol aroid, etc.) para dar mais apelo ao ramerrame da vida. A edição é pressuposta, é nativa do programa (nativo, na tecnologíria, é aquilo que já vem junto. Por exemplo, o Paint é nativo do Windows. Ele já vem instalado, já está lá). Quadradinho por quadradinho (as fotos do Instagram não são 3×4, são 4×4), vai sendo construída a vida aparente de cada um.

Das fotos postadas no Instagram, um dos temas favoritos é comida – há até uma rede social apenas para isso, o Foodspotting. Pratos lindos, pães feitos em casa, frutas coloridas volta e meia aparecem no stream (a fileira de coisas publicadas por seus amigos) do Instagram. E sabendo que você vai fotografar e publicar o que vai comer, a aparência, de novo, ganha importância, talvez maior do que a própria comida. Não é o simples “você é o que vo cê come”, mas “você pode parecer ser o que você mostra que come”.

E, da mesma forma, isso acontece com o jeito que você se veste, se porta, caminha, espera. Há um desabrochar de consciência individual e coletiva que é anterior à internet (afinal, tribos urbanas existem desde quando?), mas com a possibilidade de editar nossas imagens online, isso se aguçou mesmo fora da rede.

Assim, assistimos, na segunda década do novo século, ao nascimento de uma individualização em massa que, inevitavelmente, cria multidões de clones. Mas isso é fase. Essa personalização radical da própria individualidade tende a se acentuar nos próximos anos, na medida em que cada um de nós se percebe como polo de emissão – não apenas de percepção. Afinal, não é à toa que “parecer” e “aparecer” sejam verbos tão, er, parecidos…

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