Sobre uma foto do Anhangabaú – por Leão Serva

25.03.13

Poucas cidades do mundo mudaram tanto em seis décadas quanto São Paulo desde a comemoração de seu quarto centenário, em 1954. O desprezo pelo passado de província isolada e pobre e o desejo de se afirmar como uma metrópole rica, mirando-se no exemplo de Paris, Londres e Buenos Aires, certamente pesaram para que tantas alterações fossem feitas nos prédios e no tecido urbano.

Boa parte das mudanças foi feita para melhorar a qualidade de vida dos carros, em detrimento dos humanos. Avenidas, ao serem alargadas, ocuparam o lugar de casas; minhocões horrorosos foram sobrepostos a vias e praças; parques foram cimentados para se tornar terminais de ônibus…

Com as mudanças, um paulistano que deixasse a cidade em 1954 e voltasse agora provavelmente teria dificuldade de entender o traçado das ruas e se localizar. É por isso mesmo delicioso ver fotos antigas da cidade como sobejamente se observa na mostra “As origens do fotojornalismo no Brasil”, em cartaz até o dia 31 no IMS-SP e que já virou um grandioso livro lançado pelo instituto.

A exposição, composta de fotos realizadas entre as décadas de 1940 e 1960, nos melhores anos da revolucionária revista “O Cruzeiro”, já finada, é um passeio pela identidade do Brasil captada por grandes fotógrafos que formavam o staff da publicação. Não eram poucos os seus craques: Jean Manzon, José Medeiros, Pierre Verger, Marcel Gautherot, Flavio Damm, Luiz Carlos Barreto (que depois viria a ser um poderoso produtor de cinema). E entre eles, um gênio menos conhecido, Henri Ballot, um francês nascido no Brasil.

Ballot é autor de fotos que mostram São Paulo ao comemorar o quarto centenário E foi com uma de suas fotos que ocorreu o que pretendo contar. Foi certamente a dificuldade de achar referências nas paisagens urbanas de 1954 e 2013 que induziu ao erro na hora de digitalizar, fazendo com que a ampliação tenha sido feita com a imagem invertida. A fotografia do Vale do Anhangabaú vista de cima, produzida por Ballot, aparece com os prédios no lado errado. O que se vê à direita, na vida real é a esquerda, e vice-versa.

A foto de Ballot mostra o Vale do Anhangabaú, por onde passava a maior avenida da cidade, e ao fundo a então recém-inaugurada passagem de nível sob a avenida São João, feita para evitar o cruzamento dos dois maiores fluxos de carros da época. Ao centro da foto, o Viaduto do Chá, como que ligando o prédio sede das indústrias Matarazzo (hoje sede da Prefeitura), à esquerda, e a sede da companhia elétrica Light (que um dia passou a se chamar Eletropaulo e vendeu o prédio para um shopping center), meio visível à direita.

A poluição, que incrivelmente era maior então do que hoje, não permite ver com nitidez as palmeiras imperiais da Praça Carlos Gomes, e prédios escondem o Teatro Municipal. Mas dá para ver bem nítido ao fundo, à direita, o edifício Mirante do Vale, onde hoje se localiza o Instituto Fernando Henrique Cardoso.

A foto é uma espécie de vista aérea, mas sua nitidez revela que não foi feita em uma aeronave: helicópteros não eram comuns como hoje, e um aviãozinho, além de tremer a foto, não poderia voar tão baixo como o lugar onde está o fotógrafo. Ballot deve ter usado o alto do edifício Viadutos, o grande espigão projetado por João Artacho Jurado, construído junto à rua Maria Paula e que seria inaugurado no ano seguinte. No último andar do prédio há um grande mirante com vista de 360 graus, onde ele deve ter posicionado sua Rolleiflex: a foto é quadrada, como as fotos que saíam daquela câmera em formato de paralelepípedo, que disputavam o gosto dos profissionais de imprensa com as pequenas Leicas, de 35mm.

Hoje ele não poderia conseguir a mesma visão ampla, porque, 15 anos depois, em 1969, a Câmara Municipal inaugurou sua sede própria bem entre o Viadutos e a Praça da Bandeira (que de praça não tem nada, é um imenso terminal de ônibus, ao centro do qual fica uma solitária bandeira), tirando parte da visão que ele obteve no Viadutos.

Em primeiro plano, na foto, vê-se um grande anúncio sobre um prédio: “Gulf, Gasolina” (a Gulf não existe mais e as placas de publicidade foram banidas de Sampa). Mas, mesmo em 1954, a placa não estaria como aparece na foto invertida. O texto devia ser lido por quem estava no Anhangabaú. O fotógrafo a vê de costas. Na foto original, correta, as letras devem aparecer invertidas.

Não devem ser muitos, afinal, os técnicos de ampliação digital de fotografias que tenham intimidade com o “Buraco do Adhemar”, apelido carinhoso que os paulistanos deram à passagem sob a São João, inaugurada em 1951. O pequeno túnel foi uma das principais obras viárias daquele político do século XX que em tudo se parece com seu herdeiro político Paulo Maluf: filhote de uma ditadura (Vargas) e famoso por cobrar propinas (ele mesmo espalhava a expressão “caixinha do Adhemar”), marcava suas administrações por grandes obras de engenharia viária. Também ele foi alternadamente prefeito da capital e governador do Estado.

O “Buraco” desapareceu na grande reforma do Anhangabaú realizada pelo prefeito Jânio Quadros (1985-88), inimigo político de Adhemar, que fez um túnel que se inicia sob o Viaduto do Chá e vai além da esquina com a São João. Mas a obra só foi inaugurada pela sucessora de Jânio (Erundina, 1989-1992), o que tirou do apelido o nome do mesmo e, para evitar grosserias, também de Erundina. E hoje o Vale se chama, apenas, Anhangabaú.

Leão Serva é jornalista.

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