O centenário de Wilson Baptista se completa neste 3 de julho. O ator, cantor e escritor Rodrigo Alzuguir está preparando uma biografia do compositor a ser lançada até o fim do ano. O texto abaixo é uma adaptação do perfil que ele escreveu para Wilson Baptista – Cancioneiro Comentado, álbum com mais de cem partituras que sai em julho.
“Parabéns para você/ Pelo seu aniversário/ Que Deus o faça feliz/ Bem feliz, junto aos seus/ São os meus ardentes votos/ Com toda sinceridade/ Parabéns para você/ E muita felicidade…“, cantava Aracy de Almeida em meados de 1945.
Ao compor esse samba (“Parabéns para você”) com o parceiro Roberto Martins, Wilson Baptista estava na crista da onda. Tinha 32 anos de idade e uma “bagagem” respeitável recheada de sucessos, propagados pelas maiores vozes de seu tempo – Francisco Alves, Carmen Miranda, Mario Reis, Dyrcinha Baptista, Orlando Silva, Linda Baptista, Moreira da Silva, Odette Amaral, Sylvio Caldas, Aracy de Almeida, Cyro Monteiro, Aracy Cortes, Luiz Barbosa, os Anjos do Inferno, o Bando da Lua, entre outros. Era conhecido no rádio, no disco, no teatro musicado, nas chamadas “casas de diversão” (cabarés, dancings, gafieiras), e, sobretudo, no mítico Café Nice, ponto de encontro de compositores na Avenida Rio Branco, onde viveu a sua melhor fase profissional, dividindo mesas com os grandes em pé de igualdade. Sua troca de farpas musicais com Noel Rosa já era coisa do passado – tinham se passado dez anos.
Vestia o fino. Sapato do Motinha, sob encomenda. Terno de linho 120 inglês, feito por alfaiate de confiança. Bigode aparadinho. As ondas no cabelo crespo feitas à base de vaselina, sua marca registrada e frisson das morenas da Lapa. Posava, galante, para fotos de divulgação, dava entrevistas, aparecia em jornais e revistas. O compositor Custódio Mesquita, exímio melodista e colega de Nice, achava impressionantes os caminhos melódicos e harmônicos que ele criava intuitivamente, batucando singelas caixinhas de fósforos.
Em 1945, já haviam saído das caixinhas de Wilson joias como “Etelvina!/ Acertei no milhar/ Ganhei 500 contos/ Não vou mais trabalhar…” (“Acertei no milhar”), “Eu nasci/ Num clima quente/ Você diz a toda gente/ Que eu sou moreno demais…” (“Preconceito”), “Cheguei cansado do trabalho/ Logo a vizinha me falou/ Oh, Seu Oscar/ Tá fazendo meia hora/ Que a sua mulher foi s´embora/ E um bilhete deixou…” (“Oh, Seu Oscar”), “Quero uma mulher/ Que saiba lavar e cozinhar…” (“Emília”), “Quem trabalha é que tem razão/ Eu digo e não tenho medo de errar…” (“O Bonde São Januário”), “Eu tiro o domingo para descansar/ Mas não descansei/ Que louco fui eu…” (“E o juiz apitou”), “Foi na Lapa que eu nasci/ Foi na Lapa que eu aprendi a ler/ Foi na Lapa que eu cresci/ E na Lapa eu quero morrer…” (“Largo da Lapa”), “Serei/ Serei leal contigo/ Quando eu cansar dos teus beijos, te digo…” (“Lealdade”) e muitas outras. Nos anos seguintes, viriam outras: “O pedreiro Waldemar”, “Balzaquiana”, “Chico Brito”, “Mulato calado”, “Nega Luzia”, “Louco (Ela é seu mundo)”, “Samba rubro negro”, “Mundo de zinco” – é provável que você conheça todas elas, mesmo que não saiba de quem são.
O último aniversário, em 1968, Wilson passou no leito de um hospital. Ninguém cantou “Parabéns para você”. Não havia motivos para comemorar. Pele e osso, abatido, sofrendo as consequências de seu coração aumentado – taquicardia, náusea, falta de ar -, ele sabia que não tinha muito tempo de vida. Pior: estava completamente esquecido. Se um ou outro o conhecia (a exemplo de um dos médicos que o atendeu), era pelo seu papel de antagonista na Polêmica com Noel Rosa – pecha que carregava desde a década de 1950, quando a contenda com o Poeta da Vila foi repaginada e ganhou a posteridade.
Depois de uma fuga espetacular do hospital e de procurar um pianista amigo para transcrever seu samba novo, o simbólico “Transplante de coração” (“Por favor, doutor/ Transplante o coração do Chicão…“), Wilson entregou os pontos. Quatro dias depois de completar 55 anos, morreu no Souza Aguiar.
No dia 3 de julho de 2013, Wilson Baptista faria 100 anos. É tempo de cantar um “Parabéns para você” especial para ele. Não a versão em português do “Happy birthday” ianque, mas o samba gravado por Aracy. E pensando no que interessa: a obra de mestre que ele deixou para todos nós, tinindo de modernidade em pleno século XXI.
[soundcloud url=”http://api.soundcloud.com/tracks/99404138″ params=”” width=” 100%” height=”166″ iframe=”true” /]
Um campista no Rio
Desde que chegou ao Rio de Janeiro ainda menino, num trem cargueiro, fugido da cidade fluminense de Campos dos Goytacazes com a roupa do corpo e o sonho de ser sapateador no teatro de revistas, Wilson Baptista jamais se deu ao desfrute de se preocupar em construir um nome ou uma obra. Tinha a urgência da fome, de não ter onde dormir na noite seguinte. Um de seus primeiros sambas gravados é a trilha sonora perfeita para essa fase de vacas macérrimas: “Querem me botar na rua/ Vejam só que pouca sorte/ Pois eu tenho confiança/ No meu santo que é bem forte/ Como eu não tenho dinheiro/ Não existe quem me trague/ Pros credores vou dizendo/ Passe bem, que Deus lhe pague” (“Barulho no beco”).
Inteligente e persuasivo, Wilson logo se enturmaria com a fauna do centro carioca dos fins da década de 1920: malandros, punguistas, vendedores ambulantes (chegou a prestar serviços a um deles, lavando panelas numa barraquinha de angu), “mariposas”, gente do teatro musicado, do rádio, do disco. À boca miúda, diziam que foi menino de recados para, segundo um benevolente compositor da época, os “travessos” Francisco e Gabriel Meira, os conhecidos irmãos Meira, atravessadores de drogas cujo “esporte” favorito era destilar elixir paregórico para obtenção de ópio, o qual vendiam para a classe artística, às vezes em troca de favores sexuais.
Vem desse tempo o fascínio de Wilson pelos malandros – espécie de herdeiros da capoeiragem de fins do século XIX filtrados pelo lunfardo portenho e pelos filmes de gângster norte-americanos das décadas de 1920 e 1930 -, que ainda davam seus rabos de arraia com considerável liberdade pelo Rio de Janeiro. Em suas andanças pela região do Mangue, Lapa, Estácio, Cidade Nova, Saúde, Praça Tiradentes, Wilson conviveu com alguns deles – Meia-noite, Miguelzinho, Edgard, Sete Coroas -, não se sabe em que nível de camaradagem. E foi além. Homenageou-os em sambas, como “História de criança”) e “História da Lapa” (“Lapa dos capoeiras/ Miguelzinho, Camisa Preta/ Meia-noite, Edgard/ Lapa/ Minha Lapa boêmia/ A lua só vai pra casa/ Depois do sol raiar…“).
Quando descobriu que poderia descolar um trocado compondo, mais que sapateando, Wilson foi fundo. Compor para ele era muito fácil. Bastava uma tese na cabeça e uma caixa de fósforos nas mãos, para marcar o ritmo. Mas a indústria cultural ainda engatinhava, sem pressa de acolher aquele mulatinho magrela e esfomeado.
Mais imediato era vender o samba – prática que ele levou para o resto da vida. O comprador pagava no ato, ele recebia o dinheiro e não esquentava a cabeça. A transação o eximia de toda responsabilidade: a busca pelo intérprete, a caitituagem (divulgação), a assinatura de contratos com editora e gravadora, e o controle do pinga-pinga do ínfimo direito autoral. (Estima-se que boa parte de sua produção dos anos 1930 esteja oculta sob outros nomes.)
Em 1932, Wilson conseguiu finalmente a sua primeira gravação: “Por favor, vai embora”, samba em parceria com Oswaldo Silva e Benedicto Lacerda, lançado em disco pelo veterano Patrício Teixeira. No ano seguinte, Luiz Barbosa, um cantor que se apresentava tamborilando um chapéu de palha, “dividia” como ninguém e tinha sempre um sorriso na voz, gravou o samba “Na estrada da vida”, assinado por Wilson sem parceiros.
Mais um ano se passou e Wilson emplacou um relativo sucesso, o samba “Desacato”, lançado ao vivo no badalado Programa Casé da Rádio Philips e gravado em seguida por um inusitado trio de cantores: Castro Barbosa, Murillo Caldas (coautor do samba) e Francisco Alves (o maior cartaz da música popular brasileira de então). Uma conquista e tanto.
Na medida em que se distanciou de suas influências iniciais – o samba feito no Estácio e a obra revisteira de Ary Barroso -, a música de Wilson Baptista ganhou corpo e personalidade. Ali pelos anos 1940, encontrou-se: ousada, irreverente, transgressora – e com ambos os pés fincados no mundo real.
Floripes, Marina, Jane, Dolores
Em meados da década de 1940, num baile de carnaval no clube Filhos de Talma, no bairro da Saúde, Wilson conheceu sua futura esposa Marina (fantasiada de Princesa das Czardas). Não foi fácil conquistá-la: a mãe da moça não aprovava o namoro da filha com um “artista de rádio”. Mas como Marina poderia resistir a declarações de amor que vinham em forma de músicas como “A morena que eu gosto”? Como não o aceitar de volta, depois de uma briga, quando o pedido de desculpas vinha acompanhado de um disco com a gravação de “E o 56 não veio”, um samba originado de uma história acontecida entre eles?
A própria Marina conta o episódio: “De manhã cedo era o seguinte: eu viajava no 56, que era o bonde Alegria. E ele (Wilson), às 7h30 da manhã, me esperava todo o dia no ponto. Mas, quando a gente brigava, eu ia pro 58, que era o São Luiz Durão. Aí ele ficava toda a vida me esperando e eu não aparecia.”
“Fui ao chefe da Light/ Perguntei ao inspetor/ O que houve com o 56?/ Esse bonde sempre trouxe o meu amor/ Será que ela não veio porque se zangou?/ Ou o bonde Alegria descarrilhou?” – perguntava o samba. Mais autobiográfico impossível. Aliás, como boa parte da obra de Wilson.
Marina já estava casada com Wilson e ilhada em Paquetá (onde foram morar) quando descobriu que o marido atuava em “dupla jornada”, vivendo no Rio com uma antiga companheira, Floripes, uma ex-dançarina de cabaré e girl de teatro musicado, com quem tivera o primeiro filho, Wilton.
Wilson, Floripes, o filho do casal, além do pai de Wilson, a madrasta, a meia-irmã e uma vira-latinha chamada Mocinha dividiam o primeiro andar de uma casa em Santa Teresa, bairro que ele amava e homenagearia em “Pertinho do céu”, samba gravado por Déo (seu cantor mais recorrente): “Eu moro no morro/ Que não tem batucada/ Não tem violão/ Mas tem rua bem calçada/ O clima é bom/ E o lugar é uma beleza/ Eu moro no Morro de Santa Teresa“.
Sem saber da existência de Marina, a família pressionava Wilson a largar a música e arranjar um trabalho formal. A querida Irene Rosa, mulher de seu pai, vivia reclamando de seus hábitos: o enteado virava as noites na boemia, dormia de manhã, trabalhava à tarde (escrevendo letras de música num caderno, deitado de bruços no chão) e queria silêncio na casa nas horas mais esdrúxulas, além de exigir que ela descesse e subisse a escadaria que liga Santa Teresa à Lapa, hoje conhecida pelos azulejos de Jorge Selarón, só para comprar sua manteiga preferida, da marca Miramar. As lamúrias de Irene Rosa acabaram fornecendo material para a personagem vitimizada e ranzinza presente nos sambas “Cala a boca Etelvina”, “Gênio mau”, “Inimigo do batente”, “Papai, não vai”, “Que malandro você é” e “Tá maluca”. Em contrapartida, Wilson, para a madrasta, era o próprio “Hildebrando” (“sempre descansando…“), cujo lema bem poderia ser “Meu pai trabalhou tanto/ Que eu já nasci cansado“, refrão da cômica marchinha “Nasci cansado”.
Depois de muitas idas e vindas, e de barcas que chegavam a Paquetá vazias de Wilson, Marina desistiu do casamento, juntou seus trapinhos e partiu. No colo, levava o segundo rebento do compositor, uma menina chamada Marilza.
Wilson passaria a vida transformando paixões amorosas em sambas. Alguns, alegres, como “Cadê a Jane?”, feito para o grande amor de sua vida, uma dançarina oxigenada de taxi-dancing (cujo “nome de guerra” era Jane) que acabou se suicidando. Outros, melodramáticos, como “Dolores Sierra”, inspirado numa prostituta que conheceu em Barcelona, em meados da década de 1950, numa viagem pela Europa bancada pela arrecadação dos arrasa-quarteirões carnavalescos “Balzaquiana”, “Sereia de Copacabana” e “Mundo de zinco”, os três em parceria com Nássara e gravados por Jorge Goulart.
Muitas dessas músicas, no entanto, não tinham um alvo certo. Eram piscadelas de olho brejeiras e universais à figura feminina – entre elas, “Boa companheira”, “Deus no céu e ela na terra”, “Doce de coco”, “Filomena, cadê o meu?”, “Garota dos discos”, “Lá vem o Ipanema”, “O teu riso tem”, “Rosalina”, “Você é o meu xodó” e “Volta pra casa, Emília”.
Entretanto, nem tudo eram flores. Wilson também sofreu por amor. Desconfiou de companheiras (“Essa mulher tem qualquer coisa na cabeça”), reconheceu sua própria fragilidade (“Não sei dar adeus”, “Meu drama”), anteviu separações (“O princípio do fim”), rogou pragas (“Estás no meu caderno”), deu voltas por cima (“Apaguei o nome dela”), tripudiou das ex (“Lavei as mãos”), achou-se um cretino (“Fantoche”) e desesperou-se (“Sistema nervoso”) – mas não muito. Temperou isso tudo com uma leveza e um “deixe a vida levar” tipicamente cariocas.
A voz da mulher
Aos que julgam machistas alguns sambas de Wilson (como o gaiato e pidão “Emília”), uma revelação: o compositor campista foi um dos pioneiros no uso da primeira pessoa feminina, décadas antes de Chico Buarque. Em sua obra, a mulher ganhou voz não somente para reclamar do marido malandro – um cacoete dos sambas da época -, mas para cumprir traquinagens que deixariam Leila Diniz orgulhosa. Tais como anunciar em alto e bom som que vai fazer miséria no carnaval (“Alberto bronqueou”), descrever a farra em detalhes e pedir o silêncio das testemunhas (“Boca de siri”), constatar que furou a sandália de tanto sambar (“Sambei 24 horas”), se defender de fofocas (“A mulher do Seu Oscar”), declarar a paixão por um mulato (“É mato”), divagar sobre a traição do namorado (“Carta verde”), driblar uma cantada (“Eu sou de Niterói”), reconhecer que está perdendo o juízo por um homem (“Eu tenho que fugir”), optar pelo samba em detrimento de um amor careta (“Gosto mais do Salgueiro”), constatar o fim de uma relação (“Goodbye, amor”, “Depois da discussão”) e, por fim, se consolar na certeza insubmissa de que “Há sempre um coração vazio/ Pra um novo amor abrigar/ Há sempre um chinelo velho/ Pra um pé doente calçar” (“Chinelo velho”). Machista?
Quem ainda não se convenceu, ouça o samba “Lealdade”. Nele, um homem propõe a uma mulher viverem uma relação em que a verdadeira lealdade é estarem juntos por amor – mas só enquanto ele for recíproco. Isso em plenos anos 1940. Diz a letra: “Serei, serei leal contigo/ Quando eu cansar dos teus beijos, te digo/ E tu também liberdade terás/ Pra quando quiseres/ Bater a porta/ Sem olhar para trás“.
Se ainda assim restar alguma dúvida, divirta-se com a inversão de papéis configurada na marchinha “Mundo às avessas”: “A mulher dele arranjou/ Emprego de trocador/ Sai às oito, chega em casa às dezessete/ Ele é quem faz o arroz/ Ele é quem faz o feijão/ A mulher é que comanda o pelotão“.
Personagens
Outra predileção de Wilson era inventar personagens. Levava isso às últimas consequências. Alguns de seus sambas são cenas completas, quase minioperetas, contendo diálogos, à-partes e narrações, como “Cosme e Damião” (uma batida policial sendo executada por dois “meganhas” incorruptíveis, tendo como cenário a Praça Paris), “Diagnóstico” (um médico explicando ao paciente detalhes de uma doença incurável detectada num exame de raio X) e “O doutor quer falar com você” (sujeito tentando convencer um amigo a deixar de ser malandro).
De todos os “sambas de personagem”, “Oh, Seu Oscar” (que, aliás, venceu “Aquarela do Brasil” no concurso Noite da Música Popular de 1940) é o melhor exemplo. Já no primeiro verso somos apresentados não a um, mas a três personagens: Oscar, a vizinha e a esposa (na “primeira pessoa” de um bilhete). Diz o samba – aqui rearrumado como um roteiro de cinema:
OSCAR:
– Cheguei cansado do trabalho, logo a vizinha me falou…
VIZINHA:
– Oh, Seu Oscar! Tá fazendo meia-hora que a sua mulher foi embora.
E um bilhete deixou…
OSCAR:
– O bilhete assim dizia…
ESPOSA (bilhete):
– Não posso mais, eu quero é viver na orgia!
Como já foi dito, a esposa fujona teve seu direito de resposta, protagonizando “A mulher do Seu Oscar”, samba que “entrou em cartaz” no ano seguinte. Nele, a esfogueada mulher se explicava:
“- Onde eu dizia “vou-me embora pra orgia”, era pro samba, sem segunda intenção. Orgia de luz, de riso e alegria, minha gente! Parei! Fui condenada injustamente!”
Entre todos os personagens, Wilson tinha predileção por Laurindo. Orgulhava-se de ter sido o compositor que mais fez músicas sobre o fictício tocador de cuíca da Mangueira criado por Noel Rosa no samba “Triste cuíca”. Se Herivelto Martins ampliou o alcance de Laurindo, fazendo dele um bamba dos carnavais da Praça Onze, Wilson levou-o ainda mais longe. Em sua série de sambas sobre o personagem, fez Laurindo lutar contra os nazistas na 2ª Guerra Mundial (“Lá vem Mangueira”) e voltar para o Brasil “coberto de glória, trazendo garboso no peito a cruz da vitória” (“Cabo Laurindo”). Depois, retratou-o num comício no morro, com direito a missa campal e bandeira a meio pau, negando a condição de herói: “Heróis são aqueles/ Que tombaram por nós” (“Comício em Mangueira”).
Wilson se dizia apolítico, mas há quem veja fumaças de comunismo no “camarada Laurindo” – e também na (aparentemente?) inócua marchinha de carnaval “O pedreiro Waldemar”: “Leva a marmita embrulhada no jornal/ Se tem almoço, nem sempre tem jantar/ O Waldemar/ Que é mestre no ofício/ Constrói o edifício/ E depois não pode entrar“.
Wilson também ambientou outros “sambas de personagem” no morro. Alguns, espirituosos, como “Ganha-se pouco, mas é divertido”, “Nega Luzia”, “Sabotagem no morro” e “O tambor do Edgar (Venha manso)”. Outros, épicos, como “Chico Brito” (sobre um malandro-filósofo que “fuma uma erva do norte”) e “Rei Chicão” (cuja letra, sombria, já expõe a criação do poder paralelo nas favelas cariocas).
Maroto, Wilson transformou até piada de português em marchinha: “O telefone tocou pro Manoel/ E o Manoel saiu armado/ E foi pra Niterói/ Mas na viagem ele refletiu:/ Na consciência nada me dói/ Não sou Manoel, não sou casado, eu sou Joaquim/ O que é que eu vou fazer em Niterói?” (“Não sou Manoel”).
E o malandro de “Esta noite eu tive um sonho”? Ele come salsicha antes de dormir, sofre uma indigestão e sonha que está em Berlim discutindo, em alemão, com o dono de um botequim! Ha ha ha!
O mais querido
Desde que chegou ao Rio, Wilson encantou-se pelo time do Flamengo. Era “daqueles flamenguistas que assistem, inclusive, aos treinos” – disse o jogador Zizinho, ídolo do clube nos anos 1940. “E que, pela amizade que tinha com todos os jogadores, principalmente comigo, quando ele chegava o Flávio (Costa, técnico) começava a comer as unhas, porque sabia que nós íamos sair dali para uma noitada. Uma noitada calma, de bate-papo sobre música e futebol… Wilson era um cara genial.”
Entre o final dos anos 1920, quando fugiu de Campos para o Rio, e 1968, ano em que pendurou as chuteiras da vida, não foram poucas as vezes em que Wilson torceu “até ficar rouco” e regressou do futebol “todo queimado de sol”. Mas valeu a pena. Testemunhou vitórias históricas de seu time, com destaque para os campeonatos cariocas de 1939, 1942, 1943, 1944, 1953, 1954, 1955, 1963 e 1965 e o Torneio Rio-São Paulo de 1961.
Como tudo virava samba em suas mãos (e em suas caixinhas de fósforo), Wilson homenageou o seu adorado Mengo e os amigos jogadores numa dúzia de sambas sen-sa-ci-o-nais.
Em “E o juiz apitou”, descreveu com graça uma “tabelinha” entre os atacantes do time: Nandinho passa a Zizinho, Zizinho serve a Pirilo, que prepara pra chutar. Breque. Aí, infelizmente, o juiz apita: é o fim do tempo regulamentar. Que azar! (O samba foi feito num bonde depois de uma derrota para o Botafogo.)
Os “áureos tempos” dos craques Amado, Pena, Hélcio e Moderato são evocados em “Memórias de torcedor”, que retrata mais uma derrota do time. Detalhe: “o torcedor” é uma mulher. No caso, a cantora que mais gravou Wilson Baptista: Aracy de Almeida. “Eu ontem vim da Gávea tão cansada/ Com a cabeça inchada/ Pois o Flamengo tornou a perder” – lamenta Aracy no início do samba.
Enfim, chega de derrotas! Sucesso na voz de Roberto Silva, “Samba rubro negro”, criado por Wilson nos anos 1950, além de ser uma vibrante declaração de amor, tornou-se uma espécie de hino informal do time. Procure no Youtube e assista ao ídolo dos gramados Júnior cantar o samba com orgulho em ocasiões variadas. O grande João Nogueira também realizou uma gravação emblemática, mas fez uma travessura: substituiu os nomes de Rubens, Dequinha e Pavão, craques dos anos 1950 citados por Wilson no samba, pelos de Zico, Adílio e Adão, da geração dos anos 1980. Ao menos a citação à famosa Charanga do Jayme, barulhenta bandinha musical que animava a torcida nos jogos, continuou lá.
Em sua aquarela futebolística, Wilson admitiu outras cores além do vermelho e do preto. Sem preconceitos, também fez música para o Vasco: “Vamos lá que hoje é de graça/ No boteco do José/ Entra homem, entra menino/ Entra velho, entra mulher/ É só dizer que é vascaíno/ E que é amigo do Lelé“. Essa marchinha, “No boteco do José”, levantou as torcidas cruz-maltinas na voz de Linda Baptista.
Foi mais um gol de placa de Wilson.
Teses de Wilson
Para um sujeito se defender na vida não basta “alisar o banco da ciência”, é preciso cursar a “escola da calçada”. Palavras de Wilson. Apaixonado pelo (sub)mundo a seu redor, em tudo ele via poesia e possibilidades de “teses” – termo que usava para definir uma espécie de “essência de pensamento” que cada canção deveria conter.
Do drama das “mulheres da vida”, cujas desventuras lhe eram sopradas ao pé do ouvido em noites de boemia, destilou a trágica e elegante “Flor da Lapa”. As moças sofridas que recheavam de suicídios o noticiário sensacionalista foram autopsiadas em “Mãe solteira” (“dizem que essas Marias/ Não têm entrada no céu…”), “Mariposa” e “Recado que a Maria mandou”. A ética do morro frente aos crimes de morte rendeu o sublime “Mulato calado” (“A polícia procura o matador/ Mas em Mangueira não existe delator…“). Essa era a zona de brilho da lira de Wilson: a beleza, a tragédia, o humor, a crônica e a poesia do real, do não idealizado.
Wilson era notívago, conforme expressou em “Taberna”, samba que fez em tributo ao restaurante Taberna da Glória (“A noite é a companheira dos aflitos/ À noite os sonhos são sempre mais bonitos“), mas sua obra tem um caráter solar, “para cima”, esperto, gaiato, quase bossa nova, reiterado pela escolha da tonalidade maior em 90% dos casos, mesmo quando aborda temas densos, como em “Mãe solteira”. Os sambas “Como se faz uma cuíca”, “Não é economia (Alô, padeiro)”, “N-a-o-til (Não)”, “Oh, Dona Ignez” e “Se não fosse eu” são exemplos disso. Se esses ainda não forem suficientes, ouça os mais conhecidos “Preconceito” e “Louco (Ela é seu mundo)” nas versões de João Gilberto.
Seu temperamento indomável o levava a andar com valentia na contramão dos principais clichês do samba. Boêmio, detestava os bêbados, a quem considerava uns “panarícios” (chatos). Fugia deles como o diabo da cruz. Vivia pelas madrugadas à base de leite, café e refrescos.
Quando o assunto era religião, tema caríssimo ao samba, Wilson chocava com a tese de que “Deus é o dinheiro”. A busca pelo “cascalho”, dizia ele, era a força motriz do planeta. Não fosse o vil metal, ninguém saía de casa. Apesar de não ser materialista (sabia que “além de flores, nada mais vai no caixão“), Wilson negava às religiões qualquer prerrogativa metafísica. Para ele, eram rituais criados pelo ser humano. Seus sambas jamais se curvaram ao Senhor do Bonfim ou subiram as escadas da Penha, como os de Ary Barroso; nada ofertaram aos orixás, como os de Dorival Caymmi; e, orgulhosos, dispensaram qualquer lenitivo do Criador.
O olhar de Wilson para a cidade à sua volta era sensível, mas não sentimental. Com a autoridade de quem viveu a pobreza na pele, dava-se ao direito de implicar com a sedução da intelectualidade pelos ambientes menos favorecidos. Resmungava que “subúrbio era fim de mundo”, que não ia sujar paletó subindo morro e que as (até então, de fato) modestas escolas de samba eram “muito pobrezinhas” (preferia os ranchos carnavalescos). Sua vida era o coração palpitante do centro da cidade, definido pelo aglomerado de jornais, teatros, rádios, gravadoras, restaurantes e cabarés no eixo Avenida Rio Branco-Lapa-Praça Tiradentes.
Que malandro você é?
O paradoxo é que, mesmo produzindo ferozmente a vida inteira, Wilson sempre foi considerado um sujeito que nunca trabalhou. Viver exclusivamente de música (uma raridade na sua geração) era um de seus pecados. Estabelecer parcerias “conveniadas” com compradores de todas as procedências (bicheiros, bookmakers, disc-jóqueis) era outro. Fez a fama de malandro e não quis levantar-se dessa cama. “O estômago é o pior inimigo do compositor” – justificava-se.
À revista Cena Muda, nos anos 1940, o compositor Mario Lago deu nome aos bois:
“Há realmente compradores. (…) E os vendedores não são do morro. São rapazes cá de baixo, como Wilson Baptista, que se veste à última moda e não vende sua produção por vinte cruzeiros, e sim por muito bom preço.”
Em seu livro Na rolança do tempo, Mario definiu Wilson como uma “verdadeira alma do cão de mistura com um compositor de gênio.” Por fim, na década de 1980, se recusou a falar dele em entrevista a Luís Fernando Vieira, alegando não falar “de marginais” (também se negou a falar de Noel Rosa).
Percebe-se que Wilson era uma presença incômoda para o grupo de compositores do qual Mario fazia parte, oriundos da classe média e desejosos de um meio musical mais ameno. Apesar de ser apenas um dos muitos que tiraram partido do comércio do samba (quem ali no Nice nunca conveniou uma parceria que atirasse o primeiro pão com manteiga), por recusar-se a mudar (“Eu sou assim/ Quem quiser gostar de mim/ Eu sou assim“), e, opino, por um tanto de “olho gordo” de alguns colegas menos prendados, Wilson foi “pego para Cristo” como símbolo desse ranço de imoralidade que precisava ser “desodorizado”. E o “perfex” do esquecimento caiu sobre ele.
Epílogo
Com o passar do tempo, a maioria dos parceiros e colegas de Wilson passou a dividir a rotina, antes dedicada à boemia, entre família e cargos administrativos em editoras e sociedades de autores, compondo num ritmo menos intenso. (Nisso, estavam incluídos seus parceiros de fé Ataulpho Alves, Haroldo Lobo, Marino Pinto, Antônio Nássara e Roberto Martins.)
O Nice tinha fechado as portas. O carnaval, apossado pelas escolas de samba, pouco rendia. As turmas, os points e as febres musicais iam e vinham. Mas Wilson, obstinado, continuava fiel a seu estilo de vida: zanzando pelos bares do centro, sofrendo pelo Flamengo e compondo como se o mundo fosse acabar amanhã.
Semanas antes de morrer, tentou participar de um festival com um samba autorreferente e surrealista, “Transplante de coração”. Foi o último que compôs. Começava com um pedido: “Por favor, doutor/ Por favor, doutor/ Transplante o coração do Chicão“. E terminava num alerta: “Porque o sambista quando é grande demais/ Não deve desaparecer“. Ficou na tentativa: o prazo de inscrição do concurso já havia expirado quando enviou a fita com o samba. Contentou-se com uma homenagem realizada na finalíssima do evento, com Clementina de Jesus cantando alguns sucessos seus. Uma das poucas deferências que recebeu em vida. Seu sonho irrealizado? Ver a música brasileira reinando nas paradas. Afinal, “esse negócio de biri-biri-birêi/ É pro senhor Cab Cab Calloway” (“Artigo nacional”).
Wilson teve três filhos (Wilton, Marilza e Vílson) com três de seus amores (Floripes, Marina e Verinha), mas terminou sozinho num modesto apartamento na Rua Senador Dantas, em meio ao entra e sai de “mariposas”, a quem apresentava como artistas, e com um caderno transbordando de músicas inéditas guardado na gaveta.
Em 2013, ano de seu centenário, Wilson Baptista de Oliveira merece voltar ao assovio de seu povo. Para quem quiser conhecê-lo, basta ouvi-lo, tocá-lo e cantá-lo: sua vida (e a história do Rio de Janeiro, sua cidade por adoção, devoção e merecimento) está toda espelhada – e espalhada – em sua obra. E que obra!
* Rodrigo Alzuguir é produtor, ator, músico e pesquisador.
Mais Wilson Baptista
Polêmica Noel Rosa x Wilson Baptista: o famoso embate musical entre dois grandes compositores gerou um espetáculo com Monarco e Nelson Sargento no IMS em setembro de 2012. Ouça a gravação do show, apresentada por João Máximo, assista ao vídeo integral da apresentação e leia um texto de Rodrigo Alzuguir que esmiuça o caso em detalhes.
Wilson Baptista: especial sobre “o maior sambista brasileiro de todos os tempos”, segundo Paulinho da Viola, apresentado por Francisco Bosco.