Mario Cravo Neto / Acervo IMS

Mario Cravo Neto / Acervo IMS

Preciso ou não arrumar minha mesa?

Primeira Vista

23.10.17

A seção Primeira Vista publica mensalmente textos inéditos de ficção, escritos a partir de fotografias selecionadas no acervo do Instituto Moreira Salles. O autor escreve sem ter informação nenhuma sobre a imagem, contando apenas com o estímulo visual. Neste mês de outubro, o poeta Armando Freitas Filho foi convidado a escrever sobre uma foto de Mario Cravo Neto, feita em 1980 para uma série em torno de Canudos.

 

Preciso arrumar minha mesa. A cada dia ela fica mais entupida. Escrever sobre não está dando. Nem escrever acerca de. O menor caderno, o de um palmo, mal cabe. E o que nele se escreveria corria o risco de transbordar, sair da pauta. Só se for um segredo daqueles: tão grande que tem que ser escrito em letra minúscula, em código abreviado e escondido num lugar tão óbvio, como n'”A carta roubada” de Edgar Allan Poe, que Lacan escarafunchou. Mas eu não guardo nenhum segredo assim, valioso e necessário. Não guardo ou de tanto guardar ele foi se esmaecendo, ficando ilegível, quase esquecido. O que falta é o desejo de descobri-lo. O melhor esconderijo, se necessário, seria esse, então: ausência de desejo. Deixar a mesa, os objetos sobre ela e ao seu redor como estão, cobrindo-se de poeira mais e mais. Mesmo porque se arrumá-la, deixando-a limpa de lado a lado, a foto seria outra,  e eu “um outro” com ela. Portanto, depois de tanta elucubração confusa e empilhada no meu pensamento, concluo que não preciso mesmo arrumar minha mesa.

Mesa de trabalho que pertenceu ao Barão de Jeremoabo, na Fazenda Santo Antônio do Camaciatá (BA), 1980. Fotografia de Mario Cravo Neto sobre Canudos. / Acervo IMS

Mesa que foi do Barão de Jeremoabo, na Fazenda Santo Antônio do Camaciatá (BA), 1980. Mario Cravo Neto / Acervo IMS

 

Ou, pensando bem, por que não? Não me esqueço, cito de memória, já que não acho o livro no meio desse mafuá, o verso de Álvaro de Campos: “Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!” e, também, apoiado na certeza de Rimbaud: “je est um autre” citado no primeiro andar desse texto. E a mesa, se reparo bem, não é de escritório, mas sim de uma sala de passagem que aceita de tudo  um pouco que pousa nela, embora a pilha de papel bem que poderia ser as provas de um romance vale o quanto pesa, tipo Moby-Dick. Por que Moby-Dick? Talvez porque escrevo à beira-mar. Mas como não sou prosador de ofício, e sim poeta do meu tempo, sem odes e odisseias, minhas linhas são magras almejando ser graciliânicas em um dia excepcional qualquer. Por isso, amparado nas imagens e na imaginação, começo a pôr em ordem o que vejo e perscruto. Ainda estou no começo do arranjo que no entanto me toma por inteiro, me põe em pé no meio da noite para limpar o chapéu de couro na parede. Mas a mania ainda não é minha, firmemente fixada, como deveria ser.

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