A seção Primeira Vista publica mensalmente textos inéditos de ficção, escritos a partir de fotografias selecionadas no acervo do Instituto Moreira Salles. O autor escreve sem ter informação nenhuma sobre a imagem, contando apenas com o estímulo visual. Neste mês de outubro, o poeta Armando Freitas Filho foi convidado a escrever sobre uma foto de Mario Cravo Neto, feita em 1980 para uma série em torno de Canudos.
Preciso arrumar minha mesa. A cada dia ela fica mais entupida. Escrever sobre não está dando. Nem escrever acerca de. O menor caderno, o de um palmo, mal cabe. E o que nele se escreveria corria o risco de transbordar, sair da pauta. Só se for um segredo daqueles: tão grande que tem que ser escrito em letra minúscula, em código abreviado e escondido num lugar tão óbvio, como n'”A carta roubada” de Edgar Allan Poe, que Lacan escarafunchou. Mas eu não guardo nenhum segredo assim, valioso e necessário. Não guardo ou de tanto guardar ele foi se esmaecendo, ficando ilegível, quase esquecido. O que falta é o desejo de descobri-lo. O melhor esconderijo, se necessário, seria esse, então: ausência de desejo. Deixar a mesa, os objetos sobre ela e ao seu redor como estão, cobrindo-se de poeira mais e mais. Mesmo porque se arrumá-la, deixando-a limpa de lado a lado, a foto seria outra, e eu “um outro” com ela. Portanto, depois de tanta elucubração confusa e empilhada no meu pensamento, concluo que não preciso mesmo arrumar minha mesa.
Ou, pensando bem, por que não? Não me esqueço, cito de memória, já que não acho o livro no meio desse mafuá, o verso de Álvaro de Campos: “Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!” e, também, apoiado na certeza de Rimbaud: “je est um autre” citado no primeiro andar desse texto. E a mesa, se reparo bem, não é de escritório, mas sim de uma sala de passagem que aceita de tudo um pouco que pousa nela, embora a pilha de papel bem que poderia ser as provas de um romance vale o quanto pesa, tipo Moby-Dick. Por que Moby-Dick? Talvez porque escrevo à beira-mar. Mas como não sou prosador de ofício, e sim poeta do meu tempo, sem odes e odisseias, minhas linhas são magras almejando ser graciliânicas em um dia excepcional qualquer. Por isso, amparado nas imagens e na imaginação, começo a pôr em ordem o que vejo e perscruto. Ainda estou no começo do arranjo que no entanto me toma por inteiro, me põe em pé no meio da noite para limpar o chapéu de couro na parede. Mas a mania ainda não é minha, firmemente fixada, como deveria ser.