José Medeiros/Acervo IMS

Tirolesa

Primeira Vista

20.03.18

Primeira vista traz textos de ficção inéditos, escritos a partir de fotografias selecionadas no acervo do Instituto Moreira Salles. O autor escreve sem ter informação nenhuma sobre a imagem, contando apenas com o estímulo visual. Neste mês Sérgio Rodrigues foi convidado a escrever sobre uma foto de José Medeiros, tirada no Rio de Janeiro por volta de 1950.

 

José Medeiros/Acervo IMS

Jockey Club, Rio de Janeiro, c. 1950

 

Batata. Estola de raposa, cabelo da mesma cor, se bem que com o chapelão era difícil ter certeza. Mas o que eu estou dizendo: ruiva sim, barbaridade, imagina. Imaginou, pilantra, que eu sei? Eu também: fogo da cabeça aos pés, vermelha em cima e embaixo. Aquela pele suave de leitinho de cabra com duas gotas de groselha, veludo, sardas boiando na superfície, e essas eu nem precisava imaginar porque pulavam do decote feito pulgas amestradas. Chegou toda assim meio quase arfante de salto tique-taque e narizinho franzido, vinha abrindo caminho na multidão, uma bomba atômica.

O senhor se incomodaria de tomar conta da minha estola um minutito, dois no máximo? Preciso ir. Ir? Ir ali. O senhor está no céu, senhorita, mas claro que posso. Obrigada, muito gentil, mas é senhora. Ah, senhora? Me perdoe, é que tão jovem… Senhora Mata. Viúva.

E foi saindo, deixou a estola pendurada na grade, raposinha aos cuidados do raposão. Aí eu te pergunto, pilantra: precisava ela dizer aquilo? Viúva? Batata, batolina: estava pedindo. Implorando. Praticamente uivava, e de repente naquela tribuna cheia de chapéus e beldades eu não via mais ninguém, nem o prado eu via, a Gávea estava deserta e eu só tinha olhos para a senhora Mata que se afastava tribuna acima para retocar o rouge no toalete ou outra coisa mais doida de imaginar.

Imaginou? Agora imagina também que nem os cavalos eu via mais, e olha que eu tinha apostado alto em Nimrod, quase metade do salário. Mas naquele momento eu nem lembrava que tinha um binóculo pendurado no pescoço e sendo assim não registrei que Nimrod deslizava na grama altivo como um cisne, um pouco afastado do grupo com Salamalec e Carrasco, Araújo deitado para a frente sussurrando jeitoso no ouvido dele. Quase na hora da largada e eu só pensava na égua puro-sangue que a essa altura tinha sumido no mundaréu de gente e deixado de lembrança um montinho de pelos afogueados, cenoura na frente do burro, barbaridade. Eu defenderia aquela estola com a minha vida.

De repente me veio à cabeça o velho ditado, azar no jogo, sorte no amor, e tive certeza que Nimrod ia perder, mas não liguei. Demorei um pouco a entender o que dizia a velha de verruga no queixo. Estava muito exaltada, trazia com ela dois seguranças do Jockey, minha estola, minha estola, e eu agarrei a pele de raposa e disse alto lá, minha senhora, este bichinho aqui tem dono. Foi só eu dizer isso para os dois armários me levantarem um metro do chão pelos cotovelos, um escândalo. Pois é: passei aquela noite na delegacia. A senhora Mata, ou que nome tivesse a ruivinha, ninguém nunca mais viu.

O delegado de plantão era um boa-praça que parecia o irmão mais velho do Oscarito e acabou acreditando em mim. Conheço essas amigas do alheio, ele disse, pode saber que ficou de longe observando o senhor, se ninguém viesse reclamar a mercadoria ela voltava toda catita, quá-quá-quá. Como o delegado não ligava para turfe, só quando pisei na rua na manhã seguinte e cheguei no jornaleiro eu soube que Tirolesa, a alazã argentina treinada pelo Juan Zúniga, tinha humilhado Nimrod por vários corpos. A primeira fêmea da história a vencer o Grande Prêmio Brasil. Foi aí que eu entendi, pilantra, só não me peça para explicar: alguma coisa muito profunda está mudando para sempre neste mundo velho.

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