O corpo interminável

Em processo

21.08.18

O corpo interminável surgiu de uma fotografia que vi em 2011. Ela me perseguiu por um tempo e, enquanto eu escrevia, começou a perseguir também os personagens, fazer parte da trama, se desdobrar em outras imagens e narrativas. No início eu achava que estava escrevendo sobre um cara que investiga a história da mãe, uma guerrilheira desaparecida na ditadura militar no Brasil. No meio do processo, percebi que estava escrevendo mais sobre as lacunas deixadas por esse desaparecimento do que reconstruindo uma história. Agora vejo que foram as tentativas do personagem de reconstruir uma história e o seu fracasso nesse esforço que moldaram a narrativa. O livro é sobre a ausência e também sobre a escrita, essa (im)possibilidade que a gente tem de se reinventar e se refazer por meio das palavras.

 

 

Presenças

A imagem do corpo nu estirado na cama não sai da minha cabeça. Um dos braços caído para fora, os dedos tocando o chão. O outro braço sobre a barriga, como se repousasse. Os olhos abertos. Ninguém pensou em fechar os olhos, ninguém se importou com isso. Deixaram como estava. O olhar tinha essa surpresa, ninguém se importa. Era como se antecipasse tudo que ia acontecer depois, com o seu corpo, com o seu nome. Não me sai da cabeça essa imagem, essa consciência que está ali, palpável como o braço tombado para fora da cama, inútil como o outro braço esquecido sobre o abdômen. Andei o dia inteiro, atravessei ruas e sinais, com essa imagem na mente. Quando me deitei à noite, estava tão cansado que não sentia o meu corpo, era quase uma morte, o meu sentimento. Logo, porém, vi como isso era ridículo. Em segundos, estava de pé, em segundos, jantava. Iria dormir, com certeza. Coloquei a foto na cabeceira. Poderia olhar a imagem novamente a qualquer momento. E fiz isso durante a madrugada, muitas vezes. Por quê? Nada havia me escapado. Eu queria mais detalhes? Os dedos roxos encostando no chão, as manchas sobre a pele, um olho mais aberto do que o outro, o rosto levemente virado, a infiltração na parede, a porta do armário quebrada, a roupa pendurada no cabide, o que eu queria?

Já tinha lido muito sobre aquilo, mas não visto, a imagem como um soco, não assim. Depois da leitura, eu costumava escrever alguma coisa. Era uma necessidade, sobre as palavras lidas colocar as minhas, mas nunca imediatamente, meu corpo precisava de um tempo, o tempo necessário para lidar com tudo, o tempo para o tempo agir, só depois, quando as palavras saiam do papel, tomavam outro rumo, eu anotava o que tinha restado. Melina me disse que eu faço o contrário, anoto a partir do esquecimento. Foi ela que me deu a foto, foi ela que disse, veja isto. Dias depois, eu peguei a caneta, abri o caderno, e nada me veio. Eu não sabia o que escrever.

O quarto pertence a um apartamento ou casa. Escolhi apartamento, apesar da imagem de alguém pulando o muro de uma casa para fugir me remontasse a uma antiga ideia de liberdade e risco, uma ideia da infância. O apartamento tem escadas para lançar o corpo na fuga pesada e apressada para cima ou para baixo. Um prédio com a sua altura tem a ideia do encurralamento, da queda, por isso o escolhi. Porque este corpo na cama me passa a brusca sensação de que segundos antes a pessoa estava em pé, e caiu.

Não quero imaginar a queda, como o corpo se deitou, como chegou naquele quarto de paredes infiltradas, se subiu as escadas sozinho, se foi levado por outras pessoas, as vozes que ainda alcançavam os seus ouvidos, a violência das palavras ao jogarem-no na cama, o rangido do colchão velho, quando enfim tombou. Não consigo imaginar o último olhar dessas pessoas antes de saírem. Mas olharam? Não. Chamaram um fotógrafo para registrar a cena. Alguém que olhou para o corpo e para a cama e para o quarto buscando luz, enquadramento e foco. Ou não era um fotógrafo, apenas uma pessoa que estava ali para aquilo.

 


 

Estávamos procurando o mesmo livro na biblioteca, um livro com apenas um exemplar no catálogo. Estava sempre ali, na estante. Naquele momento jazia aberto sobre a mesa, o meu tronco debruçado sobre suas páginas, quando senti uma presença atrás de mim. Era ela, inclinada e curiosa. Este livro que mofava na prateleira, que quase ninguém folheava, quase ninguém lia, Melina queria saber por que eu estava lendo.

Quando eu respondi que lia por causa dos meus pais, ou melhor, da minha mãe, que foi guerrilheira, que está na lista dos desaparecidos, como tantos estão, ela me pegou pelo braço. Fomos parar num bar ali perto. Melina não o lia por um motivo pessoal, ao menos foi o que disse, os seus pais viveram naquela época como se vivessem em qualquer outra, – a voz baixa ao falar “como qualquer outra”, como se sentisse vergonha, como se quisesse dizer que não sabia como isso era possível, viver em uma época imune ao que ela traz. Só depois que dividimos uma garrafa de vinho ela me disse que, sim, era também uma questão pessoal, de forma oposta à minha: ver aquilo que seus pais não viram, abrir os olhos para o que eles fecharam. Melina costumava ir à biblioteca pelas manhãs, enquanto eu ia às tardes. Sem saber, revezávamos o único exemplar do livro sem nunca nos cruzarmos, a não ser entre as páginas (estávamos praticamente no mesmo ponto). Naquele dia, trocamos as primeiras palavras, mas era como se já existissem outras. Como se em nós houvesse esse encontro, o da leitura, um outro tipo de presença.

Começamos a ler o livro juntos, nos encontrávamos todos os dias na mesma hora, pela manhã. Mudei os meus horários para ver em seu rosto a mesma perplexidade que ela devia ver no meu, a cada página virada. Era quase um alívio, embora alívio não seja a palavra justa para o que líamos, era quase uma alegria, embora isso não seja verdade. Às vezes, durante a leitura, nos olhávamos, felizes. Estávamos lendo coisas terríveis, sofrendo com o alto grau de violência, repressão e medo. Era insuportável pensar que minha mãe havia vivido aquilo. Que os seus pais haviam ignorado tudo aquilo. Era insuportável pensar naquilo. Nesse momento, tirávamos os olhos do livro, exaustos, levantávamos o rosto e nos deparávamos um com o outro.  Era a isso que me referia, a esta felicidade.

Às vezes, eu tentava anotar alguma coisa, ali mesmo, no calor da hora, mas a ponta do lápis mal levantava do papel, eu apagava o que havia escrito.  Só depois, muito depois, conseguia escrever. Ainda assim, me sentia como se cometesse um equívoco. Um grande equívoco. Como se forçasse aquelas pessoas, tão reais, tão vivas dentro de suas lutas, desaparecimentos e mortes, a se tornarem meras referências em um texto, ou pior, personagens, meus personagens, como se eu impusesse a elas depois de tudo que viveram, algo tão frágil, capaz de se desmantelar ao menor sopro, à mínima insistência, uma farsa, uma representação.

, , , , , , , ,